A orgia do capitalismo

A orgia do capitalismo

(Robert Kurz)


Publicado em 03/10/97 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.


Globalizados, sindicatos e empresas devoram os concorrentes para sobreviver




Os peixes grandes devoram os pequenos. Nessa fórmula rudimentar parece esgotar-se a lógica da concorrência capitalista. Tanto o marxismo quanto o liberalismo viam a concentração de capital como um processo imanente e inevitável na evolução dos mercados. O marxismo dizia que, ao final, das batalhas da concorrência surgiriam umas poucas empresas gigantescas, capazes de controlar quase toda a vida econômica e ditar, a seu bel-prazer, os preços e os salários. O passo seguinte e como que “natural” da evolução econômica consistiria, portanto, em pôr esse capital altamente concentrado, com sua organização centralizada, sob a administração pública do Estado.


O liberalismo, com base na mesma análise, concluiu de forma contrária: o Estado deveria barrar, por meio de intervenções legais e dispositivos de controle, o processo desenfreado de concentração, a fim de preservar o mecanismo de concorrência -de efeitos supostamente salutares e propícios ao bem-estar- e evitar uma centralização excessiva do poder econômico. A passagem dos meios de produção para a propriedade estatal e a ordem burocrática do sistema produtor de mercadorias se revelaram um desastre histórico. A idéia liberal de um guardião estatal da livre concorrência, a quem caberia impedir a formação de megaempresas absolutas no mercado, não foi menos catastrófica, entretanto, que a experiência do socialismo estatal.


Por outro lado, os príncipes e monarcas econômicos das grandes aglomerações de capital, hoje espalhadas pelo mundo, também não parecem ser os felizardos vencedores que degradaram o sistema de regulação política a fim de repartir o mundo entre si, como ocorreu no passado com os representantes das forças imperiais do Estado. Os “global players” do grande capital internacional não são os sujeitos, mas o objeto do próprio movimento vertiginoso de concentração de capital. A globalização do mercado, a autonomização do sistema financeiro e a concentração do capital em novas superestruturas se revelam momentos vinculados e intercambiáveis de mesmo processo, que há muito se tornou incontrolável.


Com isso, a concentração do capital não avança linearmente, mas num movimento duplo, contraditório. As empresas se fundem, mas se observa também um processo de descentralização. Desde o início do século 20, não só os grandes peixes devoram os menores, mas, inversamente, e por meio do mesmo desenvolvimento, outros peixes pequenos são criados.


De fato, à medida que se formam grandes empresas, nasce simultaneamente um novo tipo de pequena e média empresa, na forma de companhias de fornecimento e de consertos, serviços industriais etc. Mas tal etapa do desenvolvimento não se mostra capaz de superar a concentração secular de capital. Primeiro, não se trata mais de pequenos produtores autônomos para os mercados local ou regional, mas de uma produção secundária de mercadorias, voltada para as superestruturas das empresas e inteiramente dependente do grande capital. E, segundo, no âmbito das empresas de fornecimento e de serviços ocorre igualmente um processo de concentração, do qual surgem novas megaempresas.


Hoje em dia, tanto a economia global quanto a nacional ou a regional do sistema produtor de mercadorias são dominadas, de fato, por relativamente poucas superempresas, ao passo que as firmas abaixo delas tornam-se cada vez mais miseráveis. A crise da rentabilidade econômica acelerou de forma absurda o desenvolvimento duplo e contraditório do processo de concentração capitalista. De um lado, as empresas encolhem por meio do “outsourcing”, a nova palavra mágica: do serviço de limpeza, passando pela contabilidade até o sistema de entregas, um número cada vez maior de esferas produtivas é “transferido”, isto é, delegado a empresas formalmente autônomas.


Mas essa novíssima espécie de “pequenos peixes” não tem mais nada a ver com a real criação de empresas. Antes, é o próprio grande capital que desenvolve, de certa forma, órgãos externos para reduzir os custos e lançar por terra o “lastro social”: não surge, absolutamente, uma nova empresa produtiva. As mesmas tarefas são realizadas com custos reduzidos e salários mais baixos, inferiores ao piso da categoria.


As empresas, além disso, se furtam ao dever legal de recolher a parcela destinada à previdência social de seus empregados. Os antigos funcionários de uma empresa, na qualidade de “autônomos”, não raro ganham somente a metade de seu salário anterior, sob piores condições e com jornadas mais extensas, arcando sozinhos com o encargo social. Essa forma perversa de uma autonomia aparente, como é chamado o fenômeno do “outsourcing” na Europa, expõe ao ridículo a “nova cultura da responsabilidade e inovação empresariais” evocada pelo neoliberalismo.


Por outro lado, o estreitamento empresarial das grandes companhias vai de par com a sua expansão em megaempresas globais, de dimensões até então inusitadas. Também esse processo é impelido pela rentabilidade econômica. Quanto mais se estreita o campo de ação da acumulação e quanto menor a produção, mais urgente se torna, para a sobrevivência econômica, a necessidade de estar globalmente presente e elevar a própria força de capital. A crise alimenta a globalização e a globalização alimenta a concentração do capital. Até grandes firmas, de renome internacional, fazem água.


Agora os peixes grandes não devoram somente os pequenos, mas também os outros peixes grandes. Em uma série de fusões nacionais e internacionais sem igual na história, o capital celebra uma orgia do canibalismo.


Assim, as grandes empresas tornam-se cada vez mais delgadas e maiores. A única megaempresa “vitoriosa” é capaz de elevar, com fusões e incorporações, o seu faturamento mundial e a sua força de capital, ao mesmo tempo em que reduz, em todas as esferas, a sua atividade empresarial. Para o conjunto do capital social, porém, os dois processos provocam a autodestruição galopante. No cômputo final, de fato, empregos e capital são mais aniquilados do que recriados. Uma grande parte das incorporações, abstraindo o “outsourcing”, só serve para tirar proveito da disparidade de custos, ou seja, para fechar setores relativamente dispendiosos da empresa e reabri-los em outras localidades, com encargos tributários e impostos ecológicos menores e salários mais baixos.


Não é rara a aquisição de outras empresas, dentro ou fora do país, com o propósito oculto de extingui-las o mais cedo possível, a fim de livrar-se de um concorrente indesejável. Às vezes o tiro sai pela culatra, e as duas partes acabam arruinadas. Mesmo quando as empresas incorporadas continuam a produzir, a fusão é acompanhada, em geral, do surto de racionalização na esfera administrativa: empregos são extintos, setores inteiros da hierarquia são eliminados e filiais fecham suas portas.


Não por acaso os bancos e as seguradoras estão à frente da onda de megafusões. Como se sabe, a acumulação cada vez menor do capital real é compensada por uma turgidez fantástica dos títulos puramente financeiros. Do mesmo modo que a produção de bens de investimento e de consumo não é mais do que um hobby secundário do alucinado capital monetário, assim também a orientação estratégica no campo de batalha da economia global das fusões passa do mercado de mercadorias para o mercado financeiro.


Por isso os grandes bancos se fundem não só mais rapidamente e em maiores proporções do que outros empreendimentos, mas também assumem a liderança na concentração do capital como um todo. A fusão estratégica do capital real é subordinada à fusão estratégica do capital fictício, pois o rendimento das aplicações financeiras a curto prazo é maior e mais fácil de obter que o rendimento de aplicações a longo prazo, destinadas à produção real.


Sob a égide dos grandes fundos de investimento, esses novos bancos direcionam todo o processo das fusões não mais segundo as expectativas dos mercados de mercadorias, mas dos mercados financeiros. Isso significa que empresas inteiras são incorporadas sem que se respeitem as perspectivas de sua atividade real, sendo “exploradas” para elevar o custo de certas ações e, assim, canalizar o excedente de liquidez para o moinho dos mercados financeiros, que se fecham sobre si mesmos. Quem se fundirá com quem é determinado, em última instância, não pelo “management” das empresas de produção, segundo seus próprios objetivos, mas pelo “management” dos bancos e dos fundos de investimento.


Os sindicatos são impotentes contra esse desenvolvimento, pois não dispõem mais de um objetivo estratégico próprio e sua crítica social está esgotada. Além de praticamente afastarem de seu campo de visão o conjunto dos desempregados, eles nada podem contra o novo fenômeno dos pretensos pequenos empresários (surgidos com o “outsourcing”) na periferia das megaempresas. Na maioria dos países, como resultado, o número de seus membros decai drasticamente.


O raio de ação sindical restringe-se cada vez mais ao pessoal especializado, em via de extinção, de grandes empresas altamente concentradas e globalizadas. E, assim, não lhes resta senão imitar em espelho a dupla tendência à autodestruição de sua contraparte social: a exemplo do grande capital, eles se tornam cada vez mais delgados e maiores.


De um lado, os sindicatos reduzem o acompanhamento e o aconselhamento de seus membros. De outro, essas organizações de tal forma “desbastadas” se fundem, para além das categorias profissionais, em novas unidades. Beira o ridículo a maneira como o processo de concentração do capital repete-se na esfera dos sindicatos: primeiro, os grandes engolem os pequenos, depois, aqueles se fundem entre si. Paralelamente às megaempresas e aos megabancos, surgem também os megasindicatos. Mas isso não é motivo de júbilo, pois esse tipo de “unidade” sindical não passa de um produto da divisão social e de um suicídio a prestações.


Aonde nos levará esse processo destrutivo de concentração econômica e social? De todo modo, ele não poderá estabilizar-se num determinado nível, uma vez que a dinâmica da crise é irreversível. A “grande comilança” das megafusões incontroláveis mostra que a contradição entre a racionalidade econômica de empresas isoladas e grupos de interesse, de um lado, e a reprodução do conjunto da sociedade, de outro, agrava-se ao extremo.


O resultado da concentração não está no fato de um punhado de organizações capitalistas incorporar a si a humanidade para administrá-la no interesse de uma acumulação crescente de capital. Por mais desagradável que fosse uma tal situação, ela poderia ser tida, de algum modo, como suportável. As ideologias marxistas e liberais não somente fracassaram, em termos político-econômicos, quanto à concentração de capital: a sua análise teórica também só em parte é verdadeira. O processo de concentração, de fato, é idêntico ao processo de crise. As grandes empresas só se fundem em unidades cada vez maiores porque o terreno do capital total torna-se cada dia menor. Por mais colossais que sejam, as megaempresas revelam-se ínfimas quando comparadas ao oceano da maioria social, que elas já são incapazes de integrar.

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