Poeta à moda antiga

Poeta à moda antiga (Thiago de Mello

Por Miguel Sanches Neto

Consagrado, por gente como Sérgio Milliet, Manuel Bandeira e Pablo Neruda, e por um grande número de leitores, como um de nossos mais importantes poetas líricos, Thiago de Mello sofre atualmente os preconceitos de uma crítica que se formou repetindo os ensinamentos tatibitates do formalismo mais estreito e irrelevante. Se o autor perdeu a espessura crítica, por ser este um campo dominado pelos chato boys paulistas e seus asseclas espalhados em todo o território nacional, ele mantém um horizonte de recepção muito estável num período em que a poesia brasileira se encontra sem leitores. A mesma crítica que, nos cadernos culturais, faz o sucesso de poetas irrelevantes, afugenta leitores que são drenados para obras menos mirabolantes. Thiago de Mello não faz sucesso nas altas rodas literárias de hoje, mas tem lugar cativo na preferência de um público de poesia que não aceita falsificações pretensamente cultas.

O novo livro do caboclo amazonense, Campo de milagres (Bertrand Brasil, 1998) contraria o desejo de silêncio que o poeta externou tanto no título de sua coletânea anterior como textualmente. De uma vez por todas (Civilização Brasileira, 1996) era para ser a sua despedida da poesia e tinha um caráter de testamento poético, em que ele liquidava seus saldos como quem vende uma casa. Significativamente, num dos textos, Thiago de Mello colocava à venda a casa, na sua terra natal, onde reside atualmente. Ele, no entanto, retorna dois anos depois com um volume substancioso, sem fugir a uma justificativa: “Este livro de milagres cumpre um emocionado dever perante os leitores que gostam de mim, aos quais deixo entrever um certo lado meu (como todo mundo, tenho vários lados), que tem preferido viver à luz da sombra” (p.232). Tal depoimento revela algumas das bases criativas do autor. Primeiro, estamos diante de um poeta que vê a poesia como algo visceralmente relacionado ao emissor. Não a um sujeito unívoco, porque o autor se reconhece múltiplo, mas a uma de suas faces. Ao contrário do que papagueiam os pingentes da rarefação vanguardista, o eu poético não é, para ele, uma ficção lingüística. Segundo, a sua poesia tem um compromisso com os leitores, sendo uma forma de comunhão com eles. E, terceiro, ela circula dentro de um conceito de afetividade.

Identificado à legendária José Olympio e, depois do fechamento desta, à Civilização Brasileira, o poeta pertence a um período literário praticamente desaparecido no Brasil. Estas duas casas editoras criaram famílias de artistas, ligados principalmente ao pensamento de esquerda, que revolucionaram nossa cultura. Thiago de Mello formou sua sensibilidade artística dentro de um meio humano extremamente rico, ficando definitivamente marcado por uma poética da camaradagem. A poesia, para ele, é uma casa democraticamente aberta a todos, é um território do convívio na amizade e no amor. Não é à toa que um de seus livros se chama Poesia comprometida com a minha e a tua vida (Civilização Brasileira, 1975), expressando um sentimento de irmandade reforçado pela inclusão, no colofon de determinado volume, “do nome de todos que participaram na edição dos livros meus, do digitador ao revisor, do diagramador ao impressor, do capista ao encadernador” (Campo de milagres, p. 231). A partilha do poético é assim a grande marca deste cantor espontâneo, que viveu e continua vivendo em contato direto com as realidades do país, ao contrário da grande massa lírica de hoje, que revela um desdém retumbante pelo real ou uma visão ingênua de estrangeiro, de quem vê o país de uma latitude distante.

O poeta pode ser definido como antiquado, realmente o seu verso não busca o novo, mas principalmente pelo fato de revelar uma penetração em nossa realidade e num dado horizonte de recepção que não é mais comum. É um poeta à moda antiga, em que a formação intelectual só tinha sentido quando em contato direto com o mundo. Esta tradição se perdeu com a excessiva intelectualização do produtor contemporâneo, que se quer circulando apenas dentro de uma tradição cultural cosmopolita, ou seja, importada dos centros de prestígio.

É a reafirmação de sua poética da camaradagem que encontramos em Campo dos milagres, livro onde Thiago de Mello continua conversando amorosamente com artistas, pessoas do povo e com aqueles que ainda vivem em sua recordação. Penso realmente na idéia de conversa, ou seja, numa literatura sem pretensão de criar um fechamento de linguagem, impossibilitando o trânsito por ela. De um modo geral, o livro é composto por crônicas poéticas. Em muitos momentos, não nos sentimos diante de um objeto artístico, mas sim numa roda de amigos, ouvindo a voz do poeta. E esta espontaneidade é buscada com rigor:

“Trabalho com as palavras

como o carpinteiro, o ourives,

com a madeira e o metal.

Algum sonho, muito barro.

Paixão é imprescindível.

Não a devastadora,

que te priva dos sentidos,

da inteligência. Paixão:

fascinada encantação

que ponho em tudo que faço:

um guisado, uma canoa,

uma conversa amorosa; (p. 163)”

A ausência de posturas poéticas em sua linguagem cria a aproximação entre autor/leitor. É nesta característica que reside a beleza de sua poesia e a sua imprescindibilidade. O ofício de escrever é o mesmo de viver, segundo o poeta, ou de conviver, como prefere este crítico. Vários poemas são dedicados a amigos, alguns falecidos, cujas fotos aparecem nas páginas do livro. Esta presença de fotogramas de pessoas dá a medida de sua poesia, cujo centro é o homem.

A celebração da amizade é uma das faces de uma celebração maior, a da vida. Mesmo perdendo os amigos, mesmo sentindo a proximidade de sua própria morte, que o teria levado, no último livro, a desistir de publicar, não vencem sua capacidade infinita de viver. O poeta está entregue integralmente às aventuras e à emoção. É uma poesia sem o pessimismo paralisante, que continua acreditando que sempre é tempo de fazer as coisas. Isso não significa que ele fuja dos assuntos dolorosos, mas sim que os enfrenta com a arma do verso. Um bom exemplo desta disposição permanente é o poema “O Nemesio”. Atendendo um chamado do pintor chileno Nemesio Antunez, que se sente morrer, o poeta parte para Santiago, levando sua solidariedade ao amigo.

Esta disposição faz com que Thiago de Mello esteja sempre em trânsito. Boa parte dos poemas foi escrita durante estes deslocamentos espaciais e logo depois de algum acontecimento. É nesse sentido que temos que entender o ofício de escrever como um ofício de viver. Seus poemas trazem a data e o local em que foram consumados, como uma forma de valorizar a experiência. O poeta escreve a partir do exercício pleno do agora, sem se acovardar diante do fim iminente ou dos problemas.

Campo de milagres (definição extraída de um poema de Bandeira para a vida) faz ecoar um grande número de escritores, revelando um autor que permanece atento ao mundo das letras. A grande diferença, em relação ao grosso de nossa atual produção, é que sua cultura literária foi posta a serviço de uma aproximação entre as pessoas e de uma vivência da realidade nacional, quando, habitualmente, ela só serve para criar distanciamentos que passam por cosmopolitismo.

Mesmo sendo produto do tempo da velhice, Campo de milagres reúne textos de um poeta em permanente amanhecer e que crê na afetividade. Não estou dizendo que a sua poética é um modelo a ser seguido, mas sim que é um exemplo que deve pesar na tradição lírica brasileira. Para que isso ocorra, será preciso desvestir os preconceitos de quase um século de frustradas tentativas cosmopolitas de vanguarda que pouco nos deixaram.

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