Uma cidade tão nobre (Gregório de Matos)
Uma cidade tão nobre,
uma gente tão honrada
veja-se um dia louvada
desde o mais rico ao mais pobre:
cada pessoa o seu cobre,
mas se o diabo me atiça,
que indo a fazer-lhe justiça,
algum saia a justiçar,
‘não me poderão negar,
que por direito, e por Lei
esta é a justiça, que manda El-Rei.
O Fidalgo de solar
se dá por envergonhado
de um tostão pedir prestado
para o ventre sustentar:
diz, que antes o quer furtar
por manter a negra honra,
que passar pela desonra,
de que Ihe neguem talvez;
mas se o virdes nas galés
com honras de Vice-Rei,
esta é a justiça, que manda El-Rei.
A Donzela embiocada
mal trajada, e mal comida,
antes quer na sua vida
ter saia, que ser honrada:
à pública amancebada
por manter a negra honrinha,
e se 1ho sabe a vizinha,
e lho ouve a clerezia
dão com ela na enxovia,
e paga a pena da lei;
esta é a justiça, que manda El-Rei.
A casada com adorno,
e o Marido mal vestido,
crede, que este tal Marido
penteia monho de corno:
se disser pelo contorno,
que se sofre a Fr. Tomás,
por manter a honra o faz,
esperai pela pancada,
que com carocha pintada
de Angola há de ser Visrei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
Os Letrados Peralvilhos
citando o mesmo Doutor
a fazer de Réu, o Autor
comem de ambos os carrilhos:
se se diz pelos corrilhos
sua prevaricação,
a desculpa, que lhe dão,
é a honra de seus parentes,
e entonces os requerentes,
fogem desta infame grei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
O Clérigo julgador,
que as causas julga sem pejo,
não reparando, que eu vejo,
que erra a Lei, e erra o Doutor:
quando vêem de Monsenhor
a Sentença Revogada
por saber, que foi comprada
pelo jimbo, ou pelo abraço,
responde o Juiz madraço,
minha honra é minha Lei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
O Mercador avarento,
quando a sua compra estende,
no que compra, e no que vende,
tira duzentos por cento:
não é ele tão jumento,
que não saiba, que em Lisboa
se lhe há de dar na gamboa;
mas comido já o dinheiro
diz, que a honra está primeiro,
e que honrado a toda Lei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
A viúva autorizada,
que não possui um vintém,
porque o Marido de bem
deixou a casa empenhada:
ali vai a fradalhada,
qual formiga em correição,
dizendo, que à casa vão
manter a honra da casa,
se a virdes arder em brasa,
que ardeu a honra entendeis:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
O Adônis da manhã,
o Cupido em todo o dia,
que anda correndo a Coxia
com recadinhos da Irmã:
e se 1he cortam a 1ã,
diz, que anda naquele andar
por a honra conservar
bem tratado, e bem vestido,
eu o verei tão despido,
que até as costas lhe verei;
esta é a justiça, que manda El-Rei.
Se virdes um Dom Abade
sobre o púlpito cioso,
não 1he chameis Religioso,
chamai-lhe embora de Frade:
e se o tal Paternidade
rouba as rendas do Convento
para acudir ao sustento
da puta, como da peita,
com que livra da suspeita
do Geral do Viso-Rei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.