Glória moribunda (Álvares de Azevedo)
Une fille de joie attendait sur la borne.
THÉOPH. GAUTIER
I
É uma visão medonha uma caveira?
Não tremas de pavor, ergue-a do lodo.
Foi a cabeça ardente de um poeta,
Outrora à sombra dos cabelos loiros,
Quando o reflexo do viver fogoso
Ali dentro animava o pensamento,
Esta fronte era bela. Aqui nas faces
Formosa palidez cobria o rosto…
Nessas órbitas—ocas, denegridas! —
Como era puro seu olhar sombrio!
Agora tudo é cinza. Resta apenas
A caveira que a alma em si guardava,
Como a concha no mar encerra a pérola,
Como a caçoula a mirra incandescente.
Tu outrora talvez desses-lhe um beijo;
Por que repugnas levantá-la agora?
Olha-a comigo! Que espaçosa fronte!
Quanta vida ali dentro fermentava,
Como a seiva nos ramos do arvoredo!
E a sede em fogo das idéias vivas
Onde está? onde foi? Essa alma errante
Que um dia no viver passou cantando,
Como canta na treva um vagabundo,
Perdeu-se acaso no sombrio vento,
Como noturna lâmpada, apagou-se?
E a centelha da vida, o eletrismo
Que as fibras tremulantes agitava
Morreu para animar futuras vidas?
Sorris? eu sou um louco. As utopias,
Os sonhos da ciência nada valem,
A vida é um escárnio sem sentido,
Comédia infame que ensangüenta o lodo.
Há talvez um segredo que ela esconde
Mas esse a morte o sabe e o não revela,
Os túmulos são mudos como o vácuo.
Desde a primeira dor sobre um cadáver,
Quando a primeira mãe entre soluços
Do filho morto os membros apertava
Ao ofegante seio, o peito humano
Caiu tremendo interrogando o túmulo
E a terra sepulcral não respondia.
Levanta-me do chão essa caveira!
Vou cantar-te uma página da vida
De uma alma que penou, e já descansa.
II
—Por quem esperas trêmula a desoras,
Mulher da noite, na deserta rua?
A miséria venceu os teus orgulhos,
E vens na treva contratar teu leito?
Vem pois. És bela. Tens no rosto frio
A imagem das Madonas descoradas.
Vagabunda de amor, és bela e pálida.
Será doce em teu seio de morena
Um momento sentir os meus suspiros
Estuantes nos lábios doloridos.
Se inda podes amar, ergue-te ainda,
Une teu peito ao meu, pálida sombra!—
III
Era uma fronte olímpica e sombria,
Nua ao vento da noite que agitava
As loiras ondas do cabelo solto;
Cabeça de poeta e libertino
Que fogo incerto de embriaguez corava.
Na fronte a palidez, no olhar aceso
O lume errante de uma febre insana.
IV
—Mancebo, quem és tu?
—Que importa o nome?
Um poeta de santas harmonias
Que a Musa obscena do bordel profana.
Na aparição balsâmica dos anjos
Porventura enlevei a mocidade.
Das virgens no cheiroso travesseiro
Porventura dormi… Meu Deus! que sonhos!
Em seios que a inocência adormecia
Repousei minha fronte embevecida.
Amei, mulher! amei!
Que sede intensa!
Secou-se-me a torrente do deserto
Que as folhas de frescura borrifava.
Tudo! tudo passou… Amei… Embora!
Quero agora dormir nos teus joelhos.
Nessa esponja da vida inda uma gota
Talvez reste a meus lábios anelantes
Que me dê um assomo de ventura
E um leito onde morrer amando ainda,
E que vida, mulher! que dor profunda,
Faminta como um verme aqui no peito!
Murcha desfaleceu a flor da vida
E cedo morrerá. . . E vós, meus anjos,
Ó Virgem Santa, que eu amei, na lira
A quem votei meu canto deliroso;
Amantes que eu sonhei, que eu amaria
Com todo o fogo juvenil que ainda
Me abrasa o coração, por que fugistes,
Brancas sombras, do céu das esperanças?
Oh! riamos da vida! tudo mente!
Os meus versos gotejam de ironias!
Esse mundo sem fé merece prantos?
À orgia! na saturnal entre a loucura
Derrama o vinho sono e esquecimento
Vinde, belezas que a volúpia inflama!
Bebamos juntos… Cantarei de novo!
A minha alma nas asas do improviso,
Como as aves do céu, voe cantando. . .
Todos caíram ébrios?.. . só eu resto?
Embora! em minha mão a lira pulsa,
Meu peito bate, a inspiração agora
Cânticos imortais ao lábio inspira.
Voai ao céu—não morrereis, meus cantos!
V
A glória! a glória! meu amor foi ela,
Foi meu Deus, o meu sangue… até meu gênio. . .
E agora!… Além os sonhos dessa vida!
Quando eu morrer, meus versos incendeiem!
Apague-se meu nome—e ao cadáver
Nem lágrimas, nem cruz o mundo vote
Sou um ímpio (disseram-no!) pois deixem-me
Descansar no sepulcro!
Por que choras,
Descorada mulher? Sabes acaso
Quem é o triste, o malfadado obscuro
Que delira e desvaira aqui na treva
E tuas mãos aperta convulsivo?
Eu não te posso amar. Meu peito morto
É como a rocha que o oceano bate
E branqueia de escuma—ali não pode
Medrar a flor cheirosa dos enlevos…
Teu amor… Eu descri até dos sonhos….
Demais dentro em tua alma eu vejo trevas,
Uma estrela de Deus não a ilumina.
Quem pudera nas ondas do passado,
Ditoso pescador, erguer no lodo
O ramo de coral de teus amores?
VI
Amei! amei! no sonho, nas vigílias
Esse nome gemi que eu adorava!
Votei amor a tudo quanto é belo!
Escuta A rua é queda. A noite escura
É negra como um túmulo. Durmamos
No leito dos amores do perdido.
Vês? nem lua no céu! tudo é medonho!
Nem estrela de luz . —Silêncio! Embora!
Escuta, anjo da noite! no meu peito
Não ouves palpitar o som da vida?
Deixa encostar meus lábios incendidos
No teu seio que bate. Vem, meu anjo!
A alma da formosura é sempre virgem!
Minha virgem—irmã—meu Deus! Contigo
Oh! deixa-me viver! Eu sinto bela
A tua alma acordando refletir-se
Nesses olhos tão negros d’Espanhola.
Quero amar e viver—sonhar—em fogo
Meus frouxos dias exaurir num beijo,
Derramar a teus pés os meus amores,
Minhas santas canções a ti erguê-las,
A ti, e só a ti!—
VII
—Que tens? desmaias?
Que tens, mancebo?
—Nada. É cedo ainda.
Não é ela ainda não. Chamei por ela. . .
Foi em vão. . . delirei. . .
—Por quem?
—A morte.
—Morrer! pobre de ti, ó meu poeta!
—Se a morte é sofrimento, eu sofro tanto,
Que a mudança do mal será consolo;
Se a morte é sono, meu cansado corpo
No descanso eternal deixai que durma.
—Eu também sofro. . . mas a morte assusta.
Eu mísera mulher nas amarguras
Descorei e perdi a formosura.
No amor impuro profanei minha’alma. ..
E nesta vida não amei contudo!
Não sou a virgem melindrosa e casta
Que nos sonhos da infância os anjos beijam
E entre as rosas da noite adormecera
Tão pura como a noite e como as flores;
Mas na minha’alma dorme amor ainda.
Levanta-me, poeta, dos abismos
Até ao puro sol do amor dos anjos!
Ó minha vida, minha vida pura,
Por que foram tão breves da inocência
Das crenças virginais os belos dias?
Chamei por Deus em vão. Sobre meu leito
Em vez do anjo do céu senti gelada
Sombra desconhecida vir sentar-se
Em beijos frios roxear meus lábios,
Em abraços de morte unir-me ao seio.
Douda! chamei por Deus! a meu reclamo
Veio o torvo Satã… Oh! não maldigas
A mísera que os seios inocentes
Entregou sem pudor a mãos impuras:
Eram taças de Deus… eu bem sabia!
Mas todo o pesadelo do passado
Foi uma horrenda sina… tudo aquilo
Escrevera Satã
VIII
—Fatalidade!
É pois a voz unânime dos mundos.
Das longas gerações que se agonizam
Que sobe aos pés do Eterno como incenso?
Serás tu como os bonzos te fingiram?
Sublime Criador, por que enjeitaste
A pobre criação? Por que a fizeste
Da argila mais impura e negro lado,
E a lançaste nas trevas errabunda
Co’a palidez na fronte como anátema,
Qual lança a borboleta a asas d’oiro
No pântano e no sangue?
Tudo é sina:
O crime é um destino—o gênio, a glória
São palavras mentidas—a virtude
É a máscara vil que o vício cobre.
O egoísmo! eis a voz da humanidade.
Foste sublime, Criador dos mundos!
IX
Tudo morre, meu Deus! No mundo exausto
Bastardas gerações vagam descridas.
E a arte se vendeu, essa arte santa
Que orava de joelhos e vertia
O seu raio de luz e amor no povo,
E o gênio soluçando e moribundo
Olvidou-se da vida e do futuro
E blasfema lutando na agonia.
Agonia de morte! Só em torno
No leito do morrer as almas gemem.
E o fantasma da morte gela tudo.
Por que um ardente amor não mais suspira
Notas do coração pelo silêncio
Da noite enamorada? A chama pura
Por que das almas se apagou nas cinzas
E a lira do poeta. se murmura
As ilusões de um mundo visionário,
Por que estala tão cedo? Vagabundo
Adormeci das árvores na sombra
E nos campos em flor errei sonhando,
Coroando-me dos lírios da alvorada.
Arvore prateada da esperança.
Sombra das ilusões, ó vida bela
E sempre bela, e no morrer ainda,
Por que pousei a fronte sobre a relva
A sombra vossa, delirante um dia?
Oh! que morro também! na noite d’alma
Sinto-o no peito que um ardor consome,
No meu gênio que apaga nas orgias,
Que foge o mundo, e o sepulcro teme . .
Exilei-me dos homens blasfemando,
Concentrei-me no fundo desespero,
E exausto de esperança e zombarias
Como um corpo no túmulo lancei-me,
Suicida da fé, no vício impuro.
X
E o mundo? não me entende. Para as turbas
Eu sou um doudo que se aponta ao dedo.
A glória é essa. P’ra viver um dia
Troquei o manto de cantor divino
Pelas roupas do insano.—Os sons profundos
Ninguém os aplaudia sobre a terra.
Para um pouco de pão ganhar da turba,
Como teu corpo no bordel profanas.
—Fiz mais ainda! prostituí meu gênio.
Oh! ditoso Filinto! ele sim pôde
Na miséria guardar seu gênio puro!
Nunca infame beijou a mão dos grandes!
Morreu como Camões, morreu sem nódoa!
Mas eu! A voz do vício arrebatou-me,
Fascinou-me da infâmia o revérbero .
Maldições sobre mim! Abre-te, ó campa!
Ali obscuro dormirei na treva
XI
O santa inspiração! fada noturna,
Por que a fronte não beijas do poeta?
Por que não lhe descansas nos cabelos
A coroa dos sonhos, e rebentam-lhe
Entre as lívidas mãos uma por uma
As cordas do alaúde no vibrá-las?
Ó santa inspiração! por que nas sombras
Não escuta o poeta à meia-noite
Os sons perdidos da harmonia santa
Que o pobre coração de amor lhe enchiam?
Eu fui à noite da taverna à mesa
Bater meu copo à taça do bandido.
Na louca saturnal beber com ele,
Ouvir-lhe os cantos da sangrenta vida
E as lendas de punhal e morticínio.
De vinho e febre pálido, deitei-me
Sobre o leito venal de uma perdida. . .
Comprimi-a no meu exausto peito.
Falei-lhe em meu amor, contei-lhe sonhos,
Do meu passado a dor, as glórias murchas
E os longos beijos da primeira amante…
Amor! amor! meu sonho de mancebo!
Minha sede! meu canto de saudade!
Amor! Meu coração, lábios e vida
A ti, sol do viver, erguem-se ainda,
E a ti, sol do viver, erguem-se embalde!
Ouvi, ouvi no leito da miséria
A pálida mulher junto a meu peito
Contar-me seus amores que passaram,
Falar-me de purezas, d’esperanças….
E soluçava a triste, e ardentes longas,
As lágrimas em fio deslizando
Eu vi caindo sobre o seio dela. . .
Oh! suas emoções, úmidos beijos,
Dos seios o tremor, aqueles prantos,
E os ofegantes ais eram mentira! .
XII
Ah! vem, alma sombria que pranteias.
Por quem choras? Por mim?
Em vez de prantos
Deixa-me suspirar a teus joelhos.
Tu sim és pura. Os anjos da inocência
Poderiam amar sobre teu seio.
Aperta minha mão! Senta-te um pouco
Bem unida a minha alma em meus joelhos,
Assim parece que um abraço aperta
Nossas almas que sofrem. Revivamos!
O passado é um sonho—o mundo é largo,
Fugiremos à pátria. Iremos longe
Habitar num deserto. No meu peito
Eu tenho amores para encher de encantos
Uma alma de mulher Por que sorriste?
Sou um louco. Maldita a folha negra
Em que Deus escreveu a minha sina .
Maldita minha mãe, que entre os joelhos
Não soubeste apertar, quando eu nascia,
O meu corpo infantil! Maldita!
XIII
Escuta:
Sinto uma voz no peito que suspira.
É a alma do poeta que desperta
E canta como as aves acordando
Oh! cantemos! até que a morte fria
Gele nos lábios meus o último canto!
Um cântico de amor, ó minha lira!
Anália! Armia! aparições formosas!
Eu amei sobre a terra as vossas sombras,
O ideal que vos anima e eu buscava,
Vive apenas no céu! vou entre os anjos,
Entre os braços da morte amar com eles!—
XIV
O poeta a tremer caiu no lodo.
A perdida tomou-lhe a fronte branca,
Pô-la ao colo—era lívida—inda o fogo
Lá dentro vacilava agonizando,
Como flutua a claridão da lâmpada
Apagando-se ao vento.
E quando a aurora
Nos céus de nácar acordava o dia,
E nas nuvens azuis o sol purpúreo
Se embalava no eflúvio de ventura
Das flores que se abriam, dos perfumes,
Da brisa morna que tremia as folhas,
Macilenta a mulher no chão da rua
Sentada, a fronte curva sobre os seios
Embalava cantando aquele morto.
Na manta o encobriu. Medrosa a furto
A infeliz o beijou—o pobre amante
Que uma só noite pernoitou com ela
Para aos pés lhe morrer—e sem ao menos
Nas faces dela estremecer um beijo.
Alguém que ali passou, vendo-a tão pálida
Sentada sobre a laje, e tão ardente,
Chegou ao pé—ergueu ao malfadado
A manta.
Como súbito acordando
Disse a moça a tremer:
—Deixa-o agora.
Ele penou de febre toda a noite,
Deitou-se descansando sobre o leito…
Oh! deixa-o dormir.
—Mulher no peito
Sabes quem te dormiu?
—”Que importa o nome?”
Assim falava-me…
—Ai de ti, misérrima!
Um poeta morreu. Fronte divina,
Alma cheia de sol, fronte sublime
Que de um anjo devera no regaço
Amorosa viver. . . Morreu Bocage!