Os bobos da corte do capitalismo

Os bobos da corte do capitalismo

(Robert Kurz)


Publicado em 11/01/99 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.





O medo de um colapso mundial dominou várias culturas. Não raro, a ele se liga a imagem do dia do Juízo Final, como no Apocalipse de João. Esses pensamentos não carecem de um certo núcleo racional e altamente terreno, que dormita sob a roupagem religiosa. Pois todaelite social, que se funda na “dominação do homem sobre o homem”(Marx) e sob cujo desígnio são criadas cada vez mais pobreza, miséria e opressão, carrega em seu coração o medo tão oculto quanto bem fundado do dia da vingança.


Na pós-modernidade globalizada do capitalismo, no fim do século 20,as elites liberais há muito não temem mais a vingança de Deus, mas,sim, a possibilidade de uma nova crise global de vulto, na qual a “mão invisível” de seu sagrado mercado poderia acarretar ainda mais destruição e morte do que já faz atualmente. Sob o signo dessa crise, a desordem da sociedade ameaça assumir proporções tais que a


civilização do dinheiro, hoje aparentemente triunfante, em breve talvez seja engolida pela história, como recentemente o seu parente pobre antagônico, o socialismo de Estado burocrático. Cada acontecimento que aponta nesse sentido (como a atual crise na Ásia) é divisado com um interessado horror. Para seu divertimento, o mundo liberal escuta a “profecia” da crise como uma história da carochinha. Mas, como a cultura pós-moderna da mídia não pode mais, de toda forma, distinguir entre realidade e “filme”, seus adeptos acreditam que tudo não passa de um jogo, depois do qual todos sairão confortavelmente para jantar. Por isso, não só os profetas da crise de conjuntura, mas também os propagandistas pós-modernos de uma jovialidade equívoca, tentam zombar de toda e qualquer advertência da crise como um pensamento “milenarista”, irracional e apocalíptico. Os verdadeiros bobos da corte do capitalismo não são, hoje em dia, os arautos das más novas, mas esses “apaziguadores” pós-modernos, que retiraram do lixo da história os despojos do progresso burguês e deles fizeram uma moda


“de segunda mão”.


O apocalipse não é tão evidentemente irracional e reacionário quanto os últimos palhaços pós-modernos da razão liberal querem fazer crer. Desde sempre, esse conceito não significou só o Juízo Final sobre um mundo já indigno da vida e o seu colapso, mas também o surgimento de um mundo novo e melhor depois da catarse da grande crise. Nesse sentido, a precisa teoria da crise de Marx, com sua prova lógica de um limite interno absoluto do capitalismo, foi de certa maneira o


pensamento apocalíptico racional da modernidade, já que continha também a esperança de um futuro pós-capitalista. O sombrio pensamento reacionário, ao contrário, quer apenas estabelecer o ponto final da aniquilação: se o mundo antigo não pode mais subsistir, tampouco existirá um mundo novo e um futuro diverso. Oswald Spengler, em seu “Declínio do Ocidente”, ansiava unicamente


pelo final “heróico” de uma catástrofe universal. E, quando Hitler viu que a guerra estava perdida, desejou a extinção de todos na Alemanha, pois eles não se tinham mostrado “dignos” dele. Quanto mais se evidencia a nova crise do capitalismo, mais o liberalismo global de hoje começa a assumir, com militância, uma postura análoga diante de todo o mundo: se a economia de mercado destrói-se a si mesma, a humanidade deve igualmente cair por terra, e nada de novo


poderá mais nascer sob o sol. O pós-modernismo, como ideologia cultural que guarnece a globalização da economia de mercado, ainda não foi tão longe; antes,


ele gostaria de obter ainda um certo progresso da cultura capitalista. Por isso, cada novo surto de crise que destrói a civilização moderna e a aproxima da barbárie é redefinido como uma “oportunidade”. Sufocamos, por assim dizer, numa inflação de “oportunidades”. Desse ponto de vista, naturalmente, não é possível


uma crítica de base do atual desenvolvimento cultural. Crítica cultural emancipatória e reacionária aparecem como idênticas, pois a mais nova tendência do momento tem de ser automaticamente a melhor e uma cornucópia de “possibilidades”, mesmo se, de fato, beire as raias do desvario.


Como em relação à crise ou ao “apocalipse”, há também na questão da crítica cultural um conteúdo diametralmente oposto. O que tanto agrada aos reacionários no passado é uma sociedade de “senhores e escravos” com uma cultura autoritária de definições claras, na qual ninguém pode afastar-se do padrão prescrito da tradição obtusa. Só na retrospectiva romântica de tais relações é que eles censuram a cultura comercial de massas do capitalismo tardio. Em oposição a


isso, uma crítica cultural emancipatória não quer, obviamente, transpor-se para algum passado glorificado. Inversamente, porém, ela também não pode aceitar toda e qualquer conjuntura nova imposta pelo tempo e dela tentar extrair algum mel, pois uma tal postura seria apenas o reverso do romantismo reacionário. Em vez disso, trata-se de mostrar a dialética negativa da história capitalista e sua cultura: cada progresso é obtido às custas de um retrocesso, cada possibilidade positiva transforma-se em seu próprio desmentido. O cativeiro babilônico das tradições agrárias foi substituído pelas pragas egípcias do mercado total. O pós-modernismo é a melhor e a mais recente prova disso, pois o seu imperativo é:


faça o quiser, mas seja lucrativo! Esta é a fórmula clássica de um “double bind”, no sentido de Gregory Bateson. Tal dialética negativa mostra-se hoje mais do que nunca no descompasso entre conquistas técnico-científicas e pobreza global. Uma potência mundial, que envia carrinhos de brinquedo a Marte, deixa 11 milhões de suas próprias crianças expostas à fome. À sombra da arquitetura mais ousada dos cinco continentes vegeta uma miséria de massas que nem a mais debilitada sociedade agrária pré-moderna foi capaz de produzir. Em retrospectiva às últimas décadas do capitalismo, o retrocesso social elementar no fim do século 20 é palpável. O barroco pós-moderno fornece a tais relações uma estética


da ignorância, que qualifica a compaixão e indignação social como falta de gosto, o que a remete espiritualmente ao século 18. Hoje, a cultura pós-moderna dos jovens de classe média lembra um pouco o comportamento dos belos e degenerados Eloi no romance utópico e pessimista “A Máquina do Tempo”, de H.G. Wells (1895), que sempre estão à busca de diversão, não conseguem mais se concentrar em nada e não mostram interesse algum pela verdadeira situação do


mundo. Ao que parece, todas as imagens de horror e as utopias negativas dos últimos cem anos são reverenciadas como modelos positivos no pós-modernismo. Como, entretanto, uma cultura do apartheid social e do canibalismo econômico vinga-se (a longo prazo) nos próprios grupos sociais dominantes, fica demonstrado o declínio intelectual da chamada burguesia. Se algo tornou-se “sempre pior”, esse algo foi o nível de educação e o standard cultural das elites capitalistas.



Da sociedade que deixa apodrecer suas universidades e sua literatura, a fim de gastar em carros, nada mais há para herdar senão uma montanha de sucata.



O pessimismo cultural da Teoria Crítica de Adorno e Horkheimer não vivia da nostalgia de normas e tradições empoeiradas, mas consistia no ceticismo diante da esperança de que fosse possível extrair dos dominantes algum bem do conhecimento ou da cultura digno de menção. De uma sociedade que deixa apodrecer seus museus, suas bibliotecas e seus monumentos culturais, bem como suas universidades e sua literatura, a fim de gastar dinheiro em automóveis, nada mais há para herdar senão uma montanha de sucata. Os conservadores, que no


passado ao menos eram educados pelos clássicos, hoje fundam seu próprio conservadorismo em Hollywood. Mesmo suas mansões deveriam ser desapropriadas para afastá-las da paisagem e não ferir os olhos humanos. Se o analfabetismo secundário é verificado nos altos círculos, que cultura restaria ainda para ser transformada? Querer tornar acessível “a todos” os hábitos de alimentação, de leitura ou de vida em geral dos “upper ten” acabariam por difundir a mais


absoluta insipidez. Mas – e a cultura de massas? Ela não poderia conter conteúdos emancipatórios? Poderia, mas não os possui atualmente. Não é preciso


que haja sempre a formação clássica engomada. As histórias em quadrinhos também podem mobilizar humor e verdade. O problema não é a cultura de massas como tal, mas o fato de seu conteúdo esgotar-se na forma comercial. Os meios técnicos não são independentes das relações sociais em que se manifestam. Nesse sentido, a discussão atual sobre a cultura de massas pós-moderna lembra a controvérsia entre Adorno e Walter Benjamin nos anos 30 e 40. Adorno via nas novas técnicas de reprodução artísticas (o filme, por exemplo) sobretudo uma nova maneira da expropriação intelectual e cultural das massas, no que respeita a toda percepção autônoma e crítica do mundo; as pessoas, por meio do poder da oferta capitalista, seriam degradadas como nunca a consumidores passivos. Benjamin, pelo contrário, entrevia nas técnicas do filme a possibilidade de uma ampliação de capacidades sensíveis e cognitivas do público. No entanto, nem Adorno argumentava contra a nova técnica de reprodução como tal nem Benjamin queria tratar somente do aspecto técnico. Antes, ele via na “participação consciente das massas” nas novas técnicas culturais, por intermédio das formas de “apercepção coletiva”, uma possibilidade emancipatória, cujo pano de fundo social era formado pelo movimento operário da época. A “estetização fascista da política” deveria ser respondida com a “politização socialista da arte”. Mas, após a Segunda Guerra Mundial, o capitalismo encontrou uma terceira possibilidade: a individualização comercial de toda vida, inclusive da política e da cultura. O televisor foi o início de uma nova cultura dos “indivíduos isolados”, que hoje desemboca na “estética da existência” pós-moderna e individual, com suas “tecnologias do eu” (Foucault) capitalistas, varridas de toda a esperança emancipatória. Hoje, são assassinos em série e criminosos de renome que executam à perfeição a estética pós-moderna. O capitalismo, na verdade, nunca teve uma cultura própria, pois ele nada mais representa que o vazio bocejante do dinheiro. Em termos artísticos, isso foi inconscientemente representado por K.S. Malévitch, já antes da Primeira Guerra Mundial, com o seu célebre “Quadrado Negro”. Depois disso, só puderam surgir diversos epílogos. O que apareceu como cultura capitalista foram sempre traços de cultura pré-moderna, que se converteram aos poucos em objetos de mercado, ou formas de protesto cultural contra o próprio capitalismo, que igualmente foram adaptadas para os fins comerciais. Hoje o capitalismo devorou tudo, ocupando-se agora em digeri-lo ou transformá-lo em lixo. Com isso, a modernidade chegou ao fim de suas possibilidades, justamente porque não há mais protestos. O pós-modernismo imagina ser capaz de, ecleticamente, tornar disponível toda a história da cultura para si próprio (“anything goes”); na verdade, ele apenas remexe desesperadamente os depósitos de lixo e os excrementos do passado capitalista, para talvez ainda encontrar restos para a “reciclagem” cultural. Pode ser que justamente tal reciclagem pós-moderna, com sua simulação pop de um “bom humor” superficial, exija aquela versão reacionária do apocalipse, segundo a qual não poderá mais surgir um novo mundo das ruínas do antigo. Esperança existiria apenas num novo movimento social de massas que se apropriasse dos potenciais emancipatórios latentes das modernas técnicas de reprodução e os voltasse contra sua forma comercial.

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