Trechos da entrevista a Caro Amigos

Trechos da entrevista a Caro Amigos
de agosto 1988

(Milton Santos)




PROFESSOR MILTON SANTOS

O brasileiro perde, com a morte do professor Milton Santos, acontecida dia 24 de junho último, um mestre das humanidades e um crítico da globalização que os poderosos do momento não saberão reverenciar (talvez lhe dediquem um nome de rua, quem sabe?). Mas ele tinha uma frase que vale para sempre: “Quem ensina não tem ódio”. Foi dita na entrevista que concedeu a Caros Amigos em agosto de 1998 e da qual retiramos alguns trechos nesta pequena homenagem.



TERRITÓRIO

Como geógrafo, creio que o território brasileiro é o melhor observatório do que está passando no país. Se olho o território brasileiro hoje, vejo primeiro que é um território nacional mas da economia internacional. Quer dizer, o esforço de quem manda, no sentido de moldar o território — porque o território vai sendo sempre moldado por quem manda —, é no sentido de favorecer o trabalho dos atores da economia internacional. Não são apenas as multinacionais estrangeiras, mas todas as grandes firmas estrangeiras ou brasileiras, são elas que trazem para o território uma lógica globalizante. Na realidade, uma lógica globalitária, há mais do que globalização, há globaritarismo. Então, temos o território brasileiro trazendo esses nexos, que são cegos, e que criam uma ordem para essas grandes empresas, trazendo desordem para tudo o mais. Desordem criada para as empresas não envolvidas, que são atingidas por ela, por essa entropia negativa dentro do território, que alcança toda a sociedade. Então, o território revela também a incapacidade de governo, quer dizer, a não-governabilidade do país, porque o Brasil é um país não-governado. Ao mesmo tempo em que o território revela que o governo, a política, se faz pelas grandes empresas. São as grandes empresas que fazem a política. Isso se vê no uso do território brasileiro.



AGRICULTURA

É um novo tipo de feudalismo, e de militarização do território ao mesmo tempo. Porque tem de obedecer, tem de fazer aquilo que manda o chamado mercado global. Vejam, por exemplo, as áreas agrícolas mais modernas, como o Estado de São Paulo, que funcionam segundo um regime militar, no sentido de ter de fazer aquilo que lhes é ordenado — ou dá ou desce, ordem unida —, seguindo o que é necessitado por essa ordem global. Digamos que a globalização dê n’água, como vai dar, como o interior de São Paulo vai reagir? Quais seriam os cenários? Uma enorme área vendendo suco de laranja, o que acontecerá?

Uma monocultura ligada a uma ordem global que não existia antes, muito mais constrangedora do que as ordens internacionais anteriores.



REAL

Qual é o limite do Real? Qual é o limite, por exemplo, do cálculo da inflação? A classe média vive do crédito. Ela deve, todos devem. Todos devemos. A gente paga. O custo do dinheiro é o custo da inflação oficial? Outra coisa, a cesta básica. Vivem falando dela. Mas e os desejos? Sou chamado a ter mais desejos pela publicidade incessante. Mais coisas foram criadas para me serem oferecidas. E a cesta básica fica imóvel. O resto, não. Então, haveria que produzir outros discursos para apressar o limite da saturação do sistema ideológico que está por trás da globalização e do sucesso dos governos globalitários. Só que os partidos partem da análise dos economistas.



CONSUMO

Vamos começar do começo. Quando eu era maduro… a gente lia muitas coisas da literatura marxista soviética — porque era mais barata, não é? —, então tinha o bem e o erro, a verdade e a mentira. A verdade e a ideologia. Mas a ideologia também é “verdadeira”, ela produz coisas que existem, que são os objetos. Esse é um primeiro ponto de partida. Um outro ponto de partida é o seguinte: a produção de idéias precede a produção das coisas, hoje. Não era assim há cinqüenta anos. Com a cientifização da produção, com a cientifização da técnica, tudo o que é produzido é precedido de uma idéia… científica. É por isso que a publicidade também precede de produção material. Quer dizer, antes de jogar um produto, faço a propaganda dele. O remédio é um exemplo, 1 por cento de matéria, 99 por cento de propaganda. Então tudo é feito assim, a produção da política também. A política cientificamente feita, como agora, é precedida pelos marqueteiros. Então, tudo no mundo de hoje tem essa produção ideológica, ou de idéias — para ser neutro — que precedem. Por conseguinte, há um mercado de idéias que antecipa a produção de tudo, pelo menos do que é hegemônico. E o consumo é o grande portador de tudo isso. Por isso, ele é o grande fundamen-talismo hoje. Não é o do Khomehini o grande fundamentalismo, é do consumo, porque é portador do meu impulso para esta forma de vida, que acaba me transformando numa coisa, num objeto.



LIDERANÇA

Não há uma escolha nacional do líder nacional. Há uma escolha internacional, global, do líder nacional. Acho que é esse o jogo, e essa escolha é em grande parte feita entre pessoas que um dia foram insuspeitas.



GLOBALIZAÇÃO

Acho que vai haver, no caso do Brasil, primeiro, uma outra federação. Vamos produzir uma outra federação. Daqui a pouco vai haver uma reforma na Constituição, feita por cima, mas daqui a pouco vai haver outra, feita por baixo, porque essa por cima não vai funcionar. Isso vai acontecer em alguns ou em todos os países. Aí, depois que fizermos a nossa federação por baixo, haverá a produção da globalização por baixo também, com novas instituições internacionais.



ENSINO

O ensino público é indispensável, e com a globalização torna-se mais indispensável para assegurar a possibilidade de pensar livremente, e de dizer livremente. Não basta pensar, tem de poder dizer. Por conseguinte, se o ensino ficar atrelado ao mercado, ou à técnica, ele será cada vez mais canalizado para a subserviência, sobretudo porque a ciência tende cada dia a ficar mais longe da verdade. Porque a ciência é feita para responder à demanda técnica e do mercado. Por conseguinte, ela estreita o seu objetivo. Só o ensino público pode restaurar isso. Dito isso, as universidades públicas teriam de ser um pouquinho mais públicas, na medida em que elas não estão abertas. O número de matrículas diminui proporcionalmente todos os anos. Em São Paulo, a evolução das vagas no ensino público é diminuta, e a expansão é do ensino privado. Então, a universidade pública, para aumentar, digamos assim, sua legitimidade, tem de se tornar um pouco mais pública. Tanto na aceitação de alunos como na escolha dos professores.



UNIVERSIDADE

A enorme dificuldade é ser intelectual neste fim de século. Uma enorme dificuldade, que na verdade está incluída nessa globalização, porque a universidade é chamada a ser porta-voz. Quer dizer, os apelos todos da globalização, aumentando os contatos entre as universidades e indicando as universidades que são faróis, eles acabam corrompendo as universidades subordinadas, como a USP e as outras, do Terceiro Mundo, que não são universidades portadoras de teorias do mundo.



CIÊNCIA

A descoberta gratuita ou de um futuro diferente daquilo que já está traçado — por conseguinte, não é mais um futuro, porque já está traçado, não é isso? — não está acontecendo. Acho que esse é o problema da ciência hoje. Quer dizer, de um lado as ciências humanas são comandadas pela moda, então a gente faz aquilo que está na moda, que está na mídia. Dá-se mais valor à moda do que ao modo porque a moda assegura a promoção, o status, a moda vem das universidades hegemônicas, que sabem por que estão impondo as modas. Então você passa quinze anos estudando dependência, passa quinze anos estudando setor informal… veja, nestes últimos quarenta anos os temas centrais foram dois ou três. Que não levaram ao progresso do conhecimento, levaram para trás. E nas ciências exatas e nas outras é o mercado que escolhe o que fazer. Com a globalização, a escolha é cada vez mais estreita. Por conseguinte, o campo de pensamento se afunila e a distância em relação à busca da verdade aumenta. E hoje há uma tecnização da pesquisa, quer dizer, há uma necessidade de dinheiro, a maior parte das pesquisas precisa de dinheiro, isso complica, porque o dinheiro é mais freqüentemente dado para os centros de pesquisa que aceitam essa instrumentalização. E pensar livremente se dá a partir de um certo estágio, uma certa experiência ou um certo gênio — gênio em qualquer idade —, o que significa um número menor de pessoas, que tem público por isso mesmo menor. E o público vai exatamente para o outro lado. A universidade pública seria o lugar do intelectual público. Mas hoje a possibilidade de ser intelectual público é cada vez mais limitada, por essas condições todas sobre as quais falamos aqui.

Trechos da entrevista a Caro Amigos
de agosto 1988

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