Virar a página (Mario Benedetti)
Do livro “Perguntas ao acaso”
Tradução de Julio Luís Gehlen
É meu lugar
meu céu
meu travesseiro
meus insultos
sou quem sou porque os outros são
há uma história em cada amanhecer
e em cada transparência do crepúsculo
estive doze anos sem virar esta página
esperando sua letra suas estampas
imaginando coisas que não diz
mas que eram igualmente certas
sem virar esta página
ninguém pode ser alguém
pode somar paisagens
espigões torrentes
multidões fronteiras
pode colecionar amores e sabores
aplausos e vaias
manjares e esmolas
os rumos os atalhos
as diferenças as indiferenças
a solidariedade e o exorcismo
as ofertas saborosas os escândalos
os dedos que assinalam e os braços abertos
as decepções e as recompensas
as recusas e as convocatórias
e no entanto é verdade
sem virar esta página,
ninguém pode ser alguém.