Cotidiana 1

Cotidiana 1 (Mario Benedetti)

Do livro “Inventário”
Tradução de Julio Luís Gehlen

A vida cotidiana é um instante
de outro instante que é a vida total do homem
mas por sua vez quantos instantes não há de ter
esse instante do instante maior

cada folha verde se move ao sol
como se perdurar fosse seu inefável destino
cada pardal avança a saltos imprevistos
como burlando-se do tempo e do espaço
cada homem se abraça a alguma mulher
como se assim agarrasse a eternidade

na realidade todas estas pertinácias
são modestos exorcismos contra a morte
batalhas perdidas com ritmo de vitória
réus obstinados que se recusam
a admitir a injusta punição
viventes que se fazem de distraídos

a vida cotidiana é também uma soma de instantes
algo assim como partículas de pó
que continuarão caindo em um abismo
e contudo cada instante
ou seja cada partícula de pó
é também um copioso universo

com crepúsculos e catedrais e campos de cultivo
e multidões e cópulas e desembarques
e bêbados e mártires e colinas

e vale a pena qualquer sacrifício
para que esse abrir e fechar de olhos
abarque por fim o instante universo
com um olhar que não se envergonhe
de sua reveladora
efêmera
insubstituível
luz.

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