Invocação

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Invocação (Álvares de Azevedo)

Variações em todas as cordas

I

Alma de fogo, coração de lavas,
Misterioso Bretão de ardentes sonhos
Minha musa serás—poeta altivo
Das brumas de Albion, fronte acendida
Em túrbido ferver!—a ti portanto,
Errante trovador d’alma sombria,
Do meu poema os delirantes versos!

II

Foste poeta, Byron! a onda uivando
Embalou-te o cismar—e ao som dos ventos
Das selváticas fibras de tua harpa
Exalou-se o rugir entre lamentos!

III

De infrene inspiração a voz ardente
Como o galope do corcel da Ucrânia
Em corrente febril que alaga o peito
A quem não rouba o coração—ao ler-te?
Foste Ariosto no correr dos versos,
Foste Dante no canto tenebroso,
Camões no amor e Tasso na doçura,
Foste poeta, Byron!
Foi-te a imaginação rápida nuvem
Que arrasta o vento no rugir medonho—
Foi-te a alma uma caudal a despenhar-se
Das rochas negras em mugido imenso.
Leste no seio, ao coração, o inferno,
Como teu Manfred desfraldando à noite
O escurecido véu.—E riste, Byron,
Que do mundo o fingir merece apenas
Negro sarcasmo em lábios de poeta.
Foste poeta, Byron!

IV

A ti meu canto pois—cantor das mágoas
De profunda agonia! —a ti meus hinos,
Poeta da tormenta—alma dormida
Ao som do uivar das feras do oceano,
Bardo sublime das Britânias brumas!

1

Foi-te férreo o viver—enigma a todos
Foi o teu coração!
Da fronte no palor fervente em lavas
Um gênio ardente e fundo:
O mundo não te amou e riste dele
—Poeta—o que era-te o mundo?
Foste, Manfred, sonhar nas serras ermas
Entre os tufões da noite—
E em teu Jungfrau—a mão da realidade
As ilusões quebrou-te!
Como um gênio perdido—em rochas negras
Paraste à beira-mar.
Do escuro céu falando às nuvens—solto
O negro manto ao ar!
O mar bramiu-te o hino da borrasca
E em pé—no peito os braços—
O riso irônico—vinha o azul relâmpago
T’esclarecer a espaços.
A fonte nua o rorejar da noite
Frio—te umedecia
E acima o céu—e além o mar te olhava
C’os olhos da ardentia!

2

As volúpias da noite descoraram-te
A fronte enfebrecida
Em vinho e beijos—afogaste em gozo
Os teus sonhos da vida.
E sempre sem amor, vagaste sempre
Pálido Dom João!
Sem alma que entendesse a dor que o peito
Te fizera em vulcão!

3

Da absorta mente os sonhos te quebrava
Do mundo o sussurrar.
E foste livre refazer teu peito
Ao ar livre do mar.
E quando o barco d’alta noite aos ventos
Entre as vagas corria
E d’astro incerto o alvor te prateava
A palidez sombria,
Era-te amor o pleitear das águas
Nos rochedos cavados—
E amargo te franzia um rir de gozo
Os lábios descorados!
E amaste o vendaval, que as folhas trêmulas
Das florestas varria—
E o mar—alto a rugir—que a ouvi-lo, a fronte
Altiva se te erguia!
E amaste negro o céu—o mar—a noite
E entre a noite—o trovão!
Num crânio zombador brindaste aos mortos.
Cantor da destruição

4

E um dia as faces desbotou-te a morte
De alvor, frio e letal
Deram-te em presa aos vermes—Mas que importa
Se é teu nome imortal?

Se foste sobranceiro na peleja
Como o foras nos cantos—
Se o grego litoral e o mar que o banha
Por ti beberam prantos?
Se do levante as virações correndo
Nos mares orientais
Deram-te nênias no sussurro trêmulo,
Byron, se o nome teu lembra um espírito
Das glórias decaído
E fez-te o coração os teus poemas
De coração perdido,
Se co’a dor de teus hinos simpatizam
Duma alma os turvos imos
E o teu sarcasmo queimador consola
E contigo sorrimos?

5

Vem, pois, poeta amargo da descrença
Meu Lara vagabundo—
E co’a taça na mão e o fel nos lábios
Zombaremos do mundo!

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