Os bilhetes por favor

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Os bilhetes por favor (David Hebert Lawrence)

Há no centro da Inglaterra um sistema de «eléctricos» de via única, que deixa ousadamente a cidade provinciana, para mergulhar no campo negro e industrial – encosta acima, encosta abaixo – atravessando aldeias sem beleza, constituídas por extensas filas de casas de trabalhadores, cruzando canais e caminhos de ferro, passando por igrejas alcandoradas nobremente muito acima do fumo e das sombras, alvoroçando mercadozinhos frios, imundos e mortiços, tilintando, na sua corrida, por diante de cinemas e lojas, até aos recôncavos das minas de carvão, para, subindo de novo, deixar para trás uma pequena igreja rural, posta à sombra de freixos, numa corrida para o términos, o último lugarejo industrial, a fria cidadezinha que treme na orla do selvático, do sombrio campo que fica para além. Ali o carro verde e creme parece descansar, resfolgando com curiosa satisfação. Mas, passados alguns minutos, o relógio dá horas na torre do Armazém da Sociedade Cooperativa de Vendas por Atacado, e ei-lo que parte de novo na sua aventura. Surgem outra vez os destemidos mergulhos pela encosta abaixo, acometendo os desvios; outra vez a frígida paragem no mercado do cimo da colina; o desdenhar a descida abrupta que se segue à igreja, e que faz parar o coração; as demoras pacientes nos desvios, à espera do carro que faz cruzamento; e assim por diante, durante duas longas horas, até que por fim a cidade assoma para lá da gordurosa fábrica de gás, aproximam-se as oficinas estreitas, encontramo-nos nas ruas sórdidas da grande cidade, entramos num desvio do nosso términos. Humilham-nos os grandes carros da cidade, de cores vermelhas e cremes; e contudo sentimo-nos ainda atrevidos, garbosos, um tanto ferrabrases, verdes como um airoso renovo de salsa, saído do negro quintal duma hulheira.
Andar nestes carros é sempre uma aventura. Desde que estamos em guerra, os guarda-freios são homens inaptos para o serviço activo: coxos e corcundas. Homens que têm o diabo no couro. A viagem transforma-se numa corrida de obstáculos. Depressa! salvamos num maravilhoso salto as pontes do canal – e agora dirigimo-nos para a encruzilhada. Com um guincho e um rasto de faíscas, estamos outra vez livres. É certo que muitas vezes um carro salta dos carris; mas que importa? Fica atolado numa vala, até que outros carros venham safá-lo. É muito vulgar acontecer que um carro, atulhado de uma sólida massa de gente, fique parado no meio da escuridão cerrada, no coração de uma noite muito escura, e que o guarda-freios e a rapariga condutora gritem então:
– Saíam todos: o carro está a arder!
Mas, em vez de se precipitarem para fora, em pânico, os passageiros respondem impassivelmente:
– Vamos embora! Vamos embora! Não saímos. Ficamos aqui mesmo. Anda para a frente, Jorge! – e assim ficam, até que as chamas aparecem realmente.
A razão desta relutância em apear-se é que as noites uivam de frio, de escuridão e ventania, e o carro é um asilo de refúgio. Os mineiros viajam de aldeia para aldeia, em busca de uma mudança de cinema, de rapariga, de taberna. Os carros vão irremediavelmente atulhados. Quem é que está para se arriscar ao abismo tenebroso lá de fora, para esperar outro carro, talvez durante uma hora, e ver depois a desoladora notícia «Reservado», apenas porque houve qualquer ligeiro desarranjo? Ou saudar um grupo de três carros brilhantes tão atulhados de gente que passam a toda a velocidade por nós com um uivo de escárnio?! Carros que passam na noite.
Este serviço, o mais perigoso serviço de carros que há na Inglaterra, como as próprias autoridades declaram com orgulho, é inteiramente feito por raparigas condutoras e por jovens e temerários guarda-freios, um pouco aleijados, ou por rapazes de constituição delicada, que avançam cheios de terror. As raparigas são jovens estouvadas e destemidas. No seu feio uniforme azul – saia até ao joelho, bivaque informe e velho na cabeça – tem todo o sangue-frio de um velho oficial de profissão. Num carro apinhado de mineiros barulhentos, cantando hinos em baixo e soltando uma espécie de antifonia de obscenidades em cima, as raparigas acham-se perfeitamente à vontade. Agarram os jovens que procuram fugir ao pagamento do bilhete. Põem fora os homens que chegaram ao fim da sua zona. Não vão deixar que façam pouco delas na sua cara – ah isso não! Não receiam ninguém; e toda a gente as receia.
– Olá, Annie!
– Olá, Ted!
– Olhe lá o meu trigo, Miss Stone (1). Quer-me parecer que tem um coração de pedra, porque mo pisou outra vez.
– Guarde-o no bolso – replica Miss Stone, subindo estouvadamente as escadas com as botas altas.
– Fazem favor, os seus bilhetes.
É peremptória, suspicaz, e pronta a dar primeiro. É capaz de se aguentar contra dez mil. As escadas daquele carro são as suas Termópilas.
E contudo, há certo romance ardente dentro destes carros, e no seio estouvado da própria Annie. A altura para o romantismo suave é de manhã, entre as dez e a uma, quando as coisas estão mais calmas: quer dizer, salvo nos dias de mercado e aos sábados. É então que Annie tem tempo para ver o que se passa à sua volta. Então salta muitas vezes do carro e dirige-se para uma loja onde espreitou qualquer coisa, enquanto o guarda-freio conversa na estrada. Há uma óptima camaradagem entre as raparigas e os guarda-freios. Não são eles companheiros de perigo, tripulações a bordo deste barco em viagem que é um carro «eléctrico», balouçando continuamente sobre as ondas duma terra tempestuosa?
É também então, durante as horas calmas, que os revisores se põem mais em evidência. Por qualquer motivo, toda a gente que se emprega neste serviço de carros é jovem: não há cabeças grisalhas. Isso não daria bom resultado. Por conseguinte, os revisores têm a idade que convém, e um deles, o chefe, tem também boa aparência. Vede-o de pé, numa manhã sombria e chuvosa, com o seu comprido capote de oleado, o seu bivaque bem feito descaído sobre os olhos, esperando saltar para um carro. O seu rosto é corado, o seu bigodinho castanho tem um tom arruçado, e há nos seus lábios um ligeiro sorriso impudente. Alto, e ainda muito regularmente ágil, mesmo dentro do seu impermeável, salta para dentro do carro e cumprimenta Annie:
– Olá, Annie! A chuva não entra consigo?
– Fazemos por isso.
Estão apenas duas pessoas no carro, de forma que a revisão é breve. Depois trava-se uma cavaqueira longa e impudente sobre o estribo, uma boa e amena cavaqueira de doze milhas.
O nome do revisor é John Thomas Raynor, conhecido vulgarmente por John Thomas, salvo algumas vezes em que por malícia o tratam por Coddy. Quando de longe o tratam por esta abreviatura, o seu rosto explode de fúria. Lavra em meia dúzia de aldeias um escândalo extraordinário contra John Thomas. Este namorisca as condutoras de manhã e sai com elas pela noite escura, quando deixam o seu carro no depósito. Acontece com frequência que as raparigas deixam o serviço, e então ele namorisca e passa a acompanhar as substitutas: contanto que estas sejam suficientemente atraentes e consintam em aceitar a sua companhia. É porém notável que a maior parte das raparigas são bastante jeitosas. São todas novas e esta vida de vaivém sobre os carros dá-lhes um desembaraço e um desplante de marinheiros. Que interessa a maneira como elas se portam quando o navio está no porto? Amanhã encontrar-se-ão de novo a bordo.
Mas Annie era um tanto selvagem, e a sua língua afiada contivera John Thomas em respeito durante muitos meses. Talvez fosse por isso mesmo que gostava mais dele, pois sempre se aproximava sorrindo com impudência. Annie via-o vencer rapariga após rapariga. Quando ele lhe fazia a corte de manhã, seria capaz de dizer, pelo movimento da sua boca e olhos, que saíra na noite anterior com esta ou aquela rapariga. Era um belo cortejador de saias. Annie conhecia-o muito bem.
Neste subtil antagonismo conheciam-se um ao outro como velhos amigos, compreendiam-se tão bem um ao outro quase como marido e mulher. Mas Annie tinha-o mantido sempre a uma distância conveniente. Além disso, tinha o seu rapaz.
Chegou, porém, em Novembro, a feira dos Estatutos, que se realizava em Bestwood, e aconteceu que Annie se encontrava de folga na noite de segunda-feira. Embora a noite estivesse feia e chuviscasse, vestiu-se e foi para o recinto da feira. Ia só, mas esperava encontrar um companheiro de qualquer espécie.
Os carrosséis giravam à roda, moendo a sua música, as barracas em volta provocavam a máxima excitação que podiam. Notava-se um triste declínio no brilho do luxo. Não obstante, o chão era lamacento como sempre, havia o mesmo aperto, a mesma multidão de rostos iluminados pelos clarões das lâmpadas eléctricas, o mesmo cheiro a nafta, e um pouco de batatas fritas e de electricidade.
Quem havia de ser o primeiro a saudar Miss Annie, no sítio das barracas, senão John Thomas? Trazia um sobretudo preto, abotoado até ao queixo, e um boné de fazenda, enterrado até aos olhos. O seu rosto, que ocupava o espaço intermediário, era corado, sorridente e simpático como sempre. Annie conhecia muito bem o que significavam os movimentos da sua boca.
Ficou muito satisfeita por conseguir um «rapaz», pois estar na feira sem companheiro não tinha graça nenhuma. Como galã que era, ele levou-a imediatamente para os Dragões, que corriam de bocarra arreganhada, na montanha russa. É certo que não eram coisa tão excitante como um carro eléctrico; mas sentar-se num dragão verde e trepidante, erguido acima dum mar de rostos barulhentos, e atravessar nesse frágil transporte os céus inferiores, enquanto John Thomas, de cigarrilha na boca, se inclinava para ela, era precisamente o que convinha. Annie, uma criaturinha roliça, ágil e cheia de vivacidade, sentia-se entusiasmada e feliz.
John Thomas quis que ficasse para a sessão seguinte. Por consequência, teve vergonha de o repelir quando ele lhe passou o braço pela cintura e a atraiu um pouco mais a si, duma forma muito quente e acariciante. Além disso, era suficientemente discreto para ocultar o mais possível os seus movimentos. Annie olhou para baixo e viu que a multidão não podia ver a mão corada e limpa do companheiro. Conheciam-se os dois tão bem!
Assim cresceu o seu entusiasmo pela feira. Depois dos dragões, foram aos cavalos. John Thomas pagava sempre, o que a obrigava a uma certa complacência. Claro que ele cavalgava o cavalo exterior, chamado «Black Bess», e ela montava de lado, voltada para ele, o cavalo de dentro, chamado «Wildfire». Mas claro que John Thomas não ia montar discretamente «Black Bess», agarrando-se à vara de metal. Andaram e oscilaram à volta, debaixo das luzes. Ele agitava-se no seu cavalo de madeira, estendendo uma perna na direcção da dela, subindo e descendo perigosamente no espaço, e inclinando-se para trás, rindo-lhe. Era inteiramente feliz. Por seu lado, ela tinha a impressão de que trazia o chapéu de banda, mas estava excitada.
John Thomas atirou argolas para cima de uma mesa, e ganhou-lhe dois grandes pregos de chapéu, azul pálido. Depois, ouvindo o barulho dos cinemas, que anunciavam outro espectáculo, treparam os degraus e entraram.
Claro que durante estes espectáculos acontece de vez em quando, quando a máquina falha, que se faz lá dentro uma escuridão cerrada. Então ouve-se uma gritaria selvagem e um estalar alto de beijos simulados. Nestes momentos John Thomas atraía a si Annie. Afinal, ele tinha uma maneira deliciosamente quente e jeitosa de segurar uma rapariga nos braços. Dava um abraço tão agradável! E, afinal, sabia bem ser assim apertada: era tão confortante, tão jeitoso, tão agradável! Inclinou-se sobre ela, que sentiu o seu respirar sobre o cabelo. Annie sabia que ele lhe queria beijar os lábios. E, afinal, ele era tão quente e ela moldava-se-lhe duma maneira tão suave! Afinal, queria que ele lhe tocasse nos lábios.
Mas a luz acendeu-se de súbito e ela despertou electricamente e endireitou o chapéu, ao passo que ele deixou ficar-lhe o braço na cintura, como que distraído. Bem, era divertida e excitante a feira, com John Thomas.
Quando o cinema acabou, foram dar um passeio pelos campos húmidos e sombrios. Ele possuía todas as artes do amor. Era especialmente forte em cingir uma rapariga, quando sentado com ela no meio da escuridão cerrada e brumosa. Parecia cingi-la no espaço, contra o seu próprio calor e satisfação. E os seus beijos eram macios, vagarosos e pesquisadores.
Assim Annie deambulou com John Thomas, embora mantivesse o namorado esperando por ela, à distância. Algumas das raparigas dos eléctricos tornaram-se insolentes. Mas as coisas são como são, nesta vida.
Não havia dúvidas que Annie gostava bastante de John Thomas. Sentia-se tão rica e quente quando se encontrava junto dele! E John Thomas gostava realmente dela, mais do que era vulgar. A maneira suave, derretida, como ela se insinuava no coração dum homem, como se se lhe derretessem os próprios ossos, era qualquer coisa de raro, qualquer coisa de bom. E ele deu-lhe todo o seu apreço.
Mas, com o andar do tempo começou a desenvolver-se uma intimidade. Annie queria considerá-lo como pessoa, como homem. Queria tomar por ele um interesse inteligente, e ser inteligentemente correspondida. Não queria uma mera presença nocturna; mas disto estava ele muito longe. E ela orgulhava-se de que ele a não poderia abandonar.
Nisto enganou-se. John Thomas tencionava permanecer uma presença nocturna; não tinha a menor intenção de se deixar absorver totalmente. Quando Annie começou a tomar um interesse inteligente por ele, pela sua vida e pelo seu carácter, John Thomas pôs-se ao fresco. Detestava o interesse inteligente, e sabia que a única maneira de o evitar era fugir-lhe. Despertara em Annie a fêmea com instintos de posse. Então deixou-a.
Não vale a pena afirmar que ela não ficou surpreendida. Ficou a princípio espantada, fora de si. Estava tão certa de o segurar! Vacilou por algum tempo, e tudo se lhe tornou incerto. Depois, chorou de fúria, indignação, desolação e infortúnio. A seguir, teve uma crise de desespero. E por fim, quando ele veio, ainda impudentemente, ao seu carro, ainda familiar, mas deixando-lhe ver pelo movimento da cabeça que entretanto se fora para qualquer outra e gozava novos repastos, então ela resolveu vingar-se.
Tinha uma noção muito exacta das raparigas que John Thomas tinha enganado. Dirigiu-se a Nora Purdy. Nora era uma rapariga alta, um tanto pálida, mas bem feita, com um bonito cabelo louro. Era um tanto reservada.
– Então?! – disse Annie abordando-a. Depois, em voz amiga: – Com quem se gasta agora o John Thomas?
– Não sei.
– Sabes, sim – disse Annie com ironia. – Sabes tão bem como eu.
– Bem, pois saiba. Eu é que não sou; de forma que não te rales com isso.
– É Cissy Meakin, não é?
– Creio que sim, até onde chegam os meus conhecimentos.
– É um descaradão! – disse Annie. – Não o posso ver. Dá-me vontade de o atirar do estribo, quando se dirige a mim.
– É o que lhe acontece qualquer dia – disse Nora.
– Ah, isso acontece-lhe, quando alguma se resolver a dar-lhe uma lição. Gostava de o ver saltar um degrau ou dois; e tu não?
– Também não se me dava.
– Tens tanta razão para isso como eu – disse Annie. – Mas qualquer dia caímos-lhe em cima, minha amiga. Que tal achas? Não queres?
– Não se me dá – disse Nora.
Mas a verdade é que Nora era muito mais vingativa do que Annie.
Uma a uma, Annie deu a volta a todas as velhas chamas. Aconteceu que Cissy Meakin deixou o serviço dos eléctricos dentro de muito pouco tempo. A mãe obrigou-a a sair. Então John Thomas ficou no qui vive. Lançou os olhos sobre o seu velho rebanho, e eles pousaram em Annie. Pensou que estaria agora livre. Além disso, gostava dela. Annie combinou com ele saírem para casa juntos no domingo à noite. Aconteceu que o seu carro devia entrar no depósito às nove e meia, ao passo que o último carro entraria às dez e quinze. Desta forma, John Thomas devia esperar ali por ela.
No depósito as raparigas tinham uma pequena sala de espera privativa. Era uma sala simples, mas confortável, com um fogão e forno, um espelho, uma mesa e cadeiras de pau. A meia dúzia de raparigas que tinham as suas razões contra John Thomas tinham combinado estar de serviço na tarde do domingo. Desta forma, à medida que os carros iam entrando, as raparigas metiam-se na sala de espera, e, em vez de se apressarem a ir para casa, sentavam-se em redor do lume e tomavam uma chávena de chá. Lá fora havia a escuridão e a ausência de lei, próprias do tempo de guerra.
John Thomas veio no carro depois delas, cerca das dez menos um quarto, e meteu a cabeça sociavelmente no quarto de espera das raparigas.
– Temos exercícios religiosos?
– Olá? – disse Laura Sharp. – É só para senhoras.
– Como assim? – disse John Thomas. Era uma das suas exclamações favoritas.
– Feche a porta, homem – disse Muriel Baggaley.
– De qual dos meus lados?
– Do lado que quiser – disse Polly Birkin.
Entrara e fechara a porta atrás de si. As raparigas abriram o círculo, para lhe darem lugar junto ao lume. Despiu o sobretudo e levantou o chapéu para a nuca.
– Quem me chega o bule?
Nora Purdy encheu-lhe uma chávena de chá em silêncio.
– Quer um bocadinho do meu pão com pingue? – disse-lhe Muriel Baggaley.
– Sim, dê-nos um bocado.
E começou a comer o seu pedaço de pão
– Não há melhor lugar do que o lar, raparigas!
Ao ouvir-lhe esta impudência, olharam todas para ele. John Thomas parecia pavonear-se na presença de tantas donzelas.
– Especialmente se não temos medo de ir para casa através da escuridão – disse Laura Sharp.
– Eu? Por mim, tenho-o.
Ficaram até ouvirem entrar o último carro. Passados poucos minutos, entrou Ema Houselay.
– Entra, minha pata choca! – exclamou Polly Birkin.
– É de morrer – disse Ema, estendendo as mãos para o fogo.
– Mas… tenho medo, de ir para casa, através da escuridão – trauteou Laura Sharp, que tinha ficado com as palavras no ouvido.
– Ó senhor John Thomas, com quem sai você esta noite? – perguntou Muriel Baggaley.
– Esta noite? Oh, vou para casa sozinho esta noite… absolutamente só.
– Como assim? – disse Nora Purdy, empregando a própria exclamação dele.
As raparigas riram com estridor.
– E eu também, Nora – disse John Thomas.
– Não sei o que quer dizer com isso – disse Laura.
– Sim, estou vacilante – disse ele, erguendo-se e deitando a mão ao sobretudo.
– Não – disse Polly. – Estamos aqui todas à sua espera.
– Temos de nos levantar cedo à manhã – disse ele num benévolo tom oficial.
As raparigas riram todas.
– Não – disse Muriel. – Não nos deixe sozinhas, John Thomas. Leve uma!
– Levo-as a todas, se quiserem – respondeu, em galanteio.
– Isso assim também não – disse Muriel. – Dois é companhia; sete é gente de mais.
– Não, leve uma – disse Laura. – Com franqueza, franquezinha; ponha as cartas na mesa, e diga qual.
– Sim – exclamou Annie, falando pela primeira vez. – Escolha, John Thomas; ouçamos a sua opinião.
– Não – disse ele. – Hoje vou muito quietinho para casa. Desta vez sou um cidadão pacato.
– Para onde é a ida? – disse Annie. – Leve então uma boazinha. Mas tem de escolher uma de nós!
– Não. Como posso escolher uma? – disse ele, rindo embaraçadamente. – Não quero arranjar inimigas.
– Só arranjava uma – disse Annie.
– A que fosse escolhida – acrescentou Laura.
– Ai, ai! Quem lhes disse isso, raparigas? – exclamou John Thomas, voltando-se de novo, como para se escapar. – Bem, boas noites.
– Não, tem de fazer a sua escolha – disse Muriel. – Volte a cara para a parede, e diga quem é que lhe toca. Ande! só lhe tocamos nas costas… uma de nós. Ande! volte a cara para a parede, não olhe, e diga quem foi que lhe tocou.
John Thomas, sentia-se pouco à vontade, desconfiando delas. Contudo, não tinha coragem para se safar. Empurraram-no para junto duma parede e voltaram-lhe a cara para lá. Fizeram-lhe carantonhas por detrás das costas, reprimindo o riso. Tinha um aspecto tão cómico! E olhava à volta, pouco à vontade.
– Andem! – exclamou.
– Está a ver! Está a ver! – gritaram elas.
Então ele voltou a cabeça, e, subitamente, com o movimento rápido de um gato, Annie avançou e arrumou-lhe a um dos lados da cabeça com uma caixa, que lhe atirou pelo ar o boné, deixando-o a oscilar. E voltou-se de um salto.
Mas, a um sinal de Annie, todas se atiraram a ele, batendo-lhe, beliscando-o, puxando-lhe o cabelo, embora mais por troça do que por despeito ou zanga. O homem já não via nada diante de si. Os olhos azuis faiscavam-lhe com um medo estranho e com fúria. Rompeu em direcção à porta; mas, como a encontrasse fechada, investiu contra ela. Excitadas e em guarda, as raparigas deixavam-se ficar em volta da sala e tinham os olhos nele, que as olhava de revés. Naquele momento tinham para John Thomas um aspecto terrifico, nos seus uniformes curtos. Estava verdadeiramente atemorizado.
– Venha daí, John Thomas! Venha daí! Escolha! – dizia Annie.
– O que querem vocês? Abram a porta!
– Ah, isso não abrimos, até que você tenha feito a sua escolha! – disse Muriel.
– Escolha de quê?
– Escolha daquela com quem há-de casar.
John Thomas hesitou um momento.
– Abram essa maldita porta e tenham juízo! – Falava com autoridade oficial.
– Tem que escolher! – gritavam as raparigas.
– Venha daí! – exclamou Annie, olhando-o de frente. – Venha daí! Venha!
Ele adiantou-se, com um ar um tanto ausente. Annie tinha tirado entretanto o cinto, e, agitando-o no ar, desfechou-lhe uma forte pancada na cabeça com a extremidade da fivela. Então ele saltou e agarrou-a. Mas imediatamente as outras raparigas correram sobre ele, puxando, rasgando e batendo. Fervia-lhes agora o sangue nas veias. Tinham-no à sua mercê e iam desforrar-se dele. Estranhas e ferozes criaturas, as raparigas dependuraram-se nele e empurraram-no, para o fazer cair ao chão. As costas do casaco da farda rasgaram-se de alto a baixo, e Nora, agarrando-lhe a parte de trás do colarinho, estava a pontos de o estrangular. Por felicidade, o botão saltou. Lutava agora num frenesi de fúria e terror, quase de terror louco. O casaco rasgado deixava-lhe as costas a descoberto; as mangas rasgadas deixavam-lhe os braços nus. As raparigas atiravam-se a ele, cravavam-lhes as unhas e puxavam-no; ou atiravam-se a ele e empurravam-no com toda a força; ou então desfechavam-lhe pancada brava. Ele baixava a cabeça encolhia-se e batia ao acaso. Então elas redobravam de intensidade.
Por fim, atiraram-no a terra, precipitaram-se sobre ele, puseram-lhe os joelhos em cima. Não tinha nem fôlego nem força para se mover. O rosto sangrava com um extenso arranhão, a cabeça estava em desalinho.
Annie e as outras raparigas puseram-lhe os joelhos em cima e curvaram-se sobre ele. Tinham as faces afogueadas, o cabelo revolto e os olhos brilhavam de maneira estranha. Até que por fim ficou quieto, com a face voltada, como jaze um animal derrotado e à mercê do seu captor. Por vezes, olhava de relance os rostos ferozes das raparigas. O peito arfava-lhe pesadamente, e tinha os punhos arranhados.
– E agora, meu amigo?! – disse Annie, então, resfolgando. – E agora?
Ouvindo essa voz de triunfo, terrificante e fria, recomeçou a lutar subitamente, com um vigor animal; mas as raparigas atiraram-se a ele com uma força e um poder sobrenaturais, dominando-o.
– Sim, e agora? – disse por fim Annie, resfolgando.
Fez-se um silêncio de morte, em que se poderia ouvir o surdo bater do coração. Era uma pausa de puro silêncio em todas as almas.
– Agora já sabes com que podes contar – disse Annie.
A vista do seu braço branco e nu enfurecia as raparigas. Ele jazia numa espécie de transe de medo e antagonismo. Elas sentiam-se possuídas de força sobrenatural.
Subitamente, Polly rompeu a rir às gargalhadas, a rir ferozmente, irreprimívelmente, e Ema e Muriel acompanharam-na. Mas Annie, Nora e Laura continuavam na mesma, tensas, vigilantes e com olhos coruscantes. John Thomas afastou a vista desses olhos.
– Sim – disse Annie, num tom curiosamente baixo, secreto e rancoroso. – Sim! Tens aí a paga! Sabes o que fizeste, não sabes? Sabes bem o que fizeste.
Ele não articulou som nem sinal, mas permaneceu de olhos brilhantes voltados, e de rosto sangrento, voltado.
– Tu devias ser morto; era o que merecias – disse Annie, colérica. – Devias ser morto! – E havia na sua voz uma intenção terrificante.
Polly cessara de rir, e dava longos bocejos e suspiros, à medida que se dominava.
– Tem de escolher agora – disse ela abstractamente.
– Oh, sim, tem – disse Laura, com vingativa decisão.
– Ouves? Ouves? – disse Annie. E, com um movimento brusco, que o fez pestanejar, voltou-lhe a cara para si.
– Ouves? – repetiu, sacudindo-o.
Mas estava inteiramente surdo. Annie deu-lhe uma forte bofetada na cara, que o fez estremecer e abrir muito os olhos. Depois, ensombrou-se-lhe o rosto, em desafio, apesar de tudo.
– Ouves? – repetiu ela.
Apenas a olhou com olhos hostis.
– Fala! – disse ainda, aproximando o seu rosto diabolicamente do dele.
– O quê? – disse, quase submisso.
– Tens de escolher! – gritou-lhe, como se fosse uma terrível ameaça, e lhe doesse não poder exigir mais.
– O quê? – disse, amedrontado.
– Escolhe a tua rapariga, Coddy. Tens que a escolher agora. E torcemos-te o pescoço, se fazes mais uma das tuas partidas, menino. Já sabes com o que tens a contar.
Houve uma pausa. Ele voltou de novo a cara. Era teimoso, na sua derrota. Não lhes cedeu nada, na realidade; não, nem mesmo que o fizessem em bocados.
– Bem, então escolho Annie – disse por fim, e a sua voz era cheia de malícia. Annie largou-o, como se fosse um carvão em brasa.
– Escolheu Annie! – gritaram as raparigas em coro.
– Eu!? – exclamou Annie. Estava ainda ajoelhada, mas distante dele, que jazia também ainda por terra, de rosto voltado. As raparigas agrupavam-se, inquietas, à sua volta.
– Eu!? – repetiu Annie, num tom de terrível amargura.
Depois levantou-se, afastando-se com estranha aversão e amargura.
– Não seria capaz de lhe tocar.
Mas a face tremia-lhe com uma expressão agónica, e parecia ir cair ao chão. As outras raparigas afastaram-se, e ele ficou deitado, com o fato roto e a cara sangrenta, voltada.
– Oh, se ele escolheu… – disse Polly.
– Não o quero; pode escolher outra – disse Annie, com o mesmo desespero amargo.
– Levante-se – disse Polly, erguendo-lhe o ombro. – Levante-se.
Ele então levantou-se vagarosamente – ser estranho, miserável, confundido. As raparigas olhavam-no à distância, curiosamente, furtivamente, perigosamente.
– Quem o quer? – perguntou Laura, em tom áspero.
– Ninguém – responderam todas com desprezo. Contudo, cada uma delas esperava que ele a olhasse, esperava que ele a olharia. Todas, excepto Annie – e havia qualquer coisa que lhe despedaçava o coração.
Contudo, ele mantinha o rosto cerrado e afastado de todas. No meio dum silêncio mortal, apanhava os farrapos do casaco, sem saber o que lhes havia de fazer. As raparigas mantinham-se à volta, inquietas, afogueadas, arfando, compondo o cabelo e os vestidos inconscientemente, e espreitando-o. Ele não olhava nenhuma. Viu o boné a um canto, e foi buscá-lo. Pô-lo na cabeça, e uma das raparigas rompeu num riso estridente e histérico, ao ver o seu aspecto. Mas ele não se importou, e foi direito ao sobretudo que pendia dum cabide. As raparigas evitavam o seu contacto, como se se tratasse dum fio eléctrico. Vestiu o casaco e abotoou-o até a baixo. Depois, embrulhou os farrapos do casaco, e ficou em silêncio diante da porta fechada.
– Abra a porta, uma de vocês – disse Laura.
– Annie é que tem a chave – disse uma.
Annie apresentou silenciosamente a chave às raparigas. Nora abriu a porta.
– Estamos pagos, meu velho. Mostre-se um homem, e não nos conserve ódio.
Mas, sem uma palavra ou sinal, ele abrira a porta e saíra, com o rosto cerrado e a cabeça pendida.
– Há-de servir-lhe de emenda – disse Laura.
– Coddy! – disse Nora.
– Calem-se, por amor de Deus! – gritou Annie em tom feroz, como que debaixo de tortura.
– Bem, estou quase pronta para sair, Polly. Compõe-te! – disse Muriel.
As raparigas estavam ansiosas por partir, compunham-se apressadamente, com rostos mudos, estupidificados.

NOTAS:
1 Stone significa pedra.

FIM

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