Propriedade do perdido (Mario Benedetti)
Do livro “Perguntas ao acaso”
Tradução de Julio Luís Gehlen
Tudo o que perdestes,
me disseram, é teu.
José Emilio Pacheco
É minha a inocência
ânfora de cristal tão desvalida
que nada me sugerem seus pedaços
a juventude é minha
e é ainda atávico sussurro
rescaldo prévio ao impossível fogo
o rosto do meu pai
tão meu é que acode a meus espelhos
para comprometer-me em seus dilemas
é meu o primeiro salmo
débil embelezado entre as árvores
cerzido com as linhas do esquecimento
meu o broto de amor
que era quimera e foi descobrimento
para soltar arroubos como um lastro
meu o muro de deus
com sua gretada e fosca pele de pedras
e suas mil garatujas de receio
e a mão fraterna
tão minha é que surge das ruínas
para estreitar minha mão e exumar-me
tudo o que perdi
é meu irremediavelmente meu
tão distante de mim que é desamparo.