Socialismo é para os ricos

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Socialismo é para os ricos

Regina Zappa e Cláudia Antunes

(Noam Chomsky)




Para muita gente, o pensamento do linguista e ativista político americano Noam Chomsky pode soar como um punhado de teorias conspiratórias.Mas, para o tranquilo professor do Massachusetts Institute of Tchnology (MIT), considerado um dos mais importantes intelectuais vivos, a realidade é trivial e não há nada de novo nas relações entre os poderosos, que controlam a população através da força ou da propaganda, e os destituídos de poder. Com naturalidade, ele afirma que a propalada onda de democratização não passa de um ataque à democracia, que o que se supõe seja o aumento do comércio mundial trata-se na verdade de transações internas entre as corporações e sua subsidiárias e que, dentro da lógica de que o lucro é privado mas o custo é público, hoje existe socialismo, mas para os ricos. A propaganda, segundo ele, é a arma dos ricos para controlar o comportamento das pessoas em sociedades onde não cabe o uso da força. “Nos EUA, as pessoas são bombardeadas com propaganda e publicidade todos os dias na televisão, desde a infância. O ideal da vida social é você e seu aparelho de TV”. Chomsky fez duas palestras no Rio, na UFRJ, no começo da semana. Na quarta-feira foi para São Paulo e ainda irá a Brasília e Maceió. No Copacabana Palace, onde se hospedou no Rio, falou com exclusividade ao Jornal do Brasil.



– Este ano os EUA assistiram ao mais baixo comparecimento às urnas da sua história. O que está acontecendo?



– A eleição é decidida entre as pessoas mais ricas. Os outros são espectadores. Esta eleição foi interessante porque a participação foi a menor da história. A razão disso é que as pessoas não estão interessadas na política. Mas este é justamente o objetivo do neoliberalismo. É eliminar a população do processo de decisões e pôr tudo nas mãos do poder privado. É como ter tiranias. É basicamente a imposição de uma espécie de totalitarismo, um totalitarismo privado. Quanto mais você diminui a participação popular e bota as decisões na mão de bancos, corporações privadas, FMI, etc., menos espaço fica para as pessoas tomarem decisões. E elas perdem o interesse.



– Por que não votam para tentar mudar isso?



– Votar em quem? Para entrar na arena política, você precisa de muito dinheiro. Se você está baseado num poder privado, claro que ele terá o dinheiro. A única maneira de as pessoas influírem é formando uma tremenda organização entre elas, juntando sindicatos, organizações populares. Mas os EUA são uma sociedade muito atomizada. As pessoas são muito sozinhas. É interessante a comparação com o Chile, onde estive há pouco. Um dos efeitos mais fortes da ditadura militar foi destruir a sociedade civil. As pessoas está isoladas. Não confiam nas outras, não ajudam as outras. Todos lá dizem isso, você pode ver isso na sociedade. Foi uma grande vitória do totalitarismo. Destruir a esperança das pessoas. Há três anos estive numa conferência em El Salvador sobre o que chamam de “cultura do terror” na América Latina. Eles diziam que as ditaduras tiveram um efeito de longo prazo, que foi domesticar as aspirações da maioria, de modo que eles nem chegam a pensar mais em se opor aos interesse dos poderosos.



– Mas os militares chilenos até hoje levam a fama de ter feito um bom trabalho na economia…



– Isso é uma mentira. Veja os fatos. Nos anos 70, a economia chilena estava de fato crescendo. Em 1982, ela entrou em colapso e o governo teve que assumir tudo. Naquele ano, o governo tinha mais controle sobre a economia do que (Salvador) Allende tinha. Então começaram a dar tudo de novo para o setor privado. Então começaram a dar tudo de novo para o setor privado. Mas nem tudo. Olhe: o cobre é o maior produto de exportação chileno, e é nacionalizado. Então a idéia de que os militares chilenos liberalizaram a economia é ridícula. Eles tentaram liberalizar, mas foi um desastre. Há um setor da sociedade que está muito rico, como aqui, mas 20% estão completamente à margem de tudo. A pobreza é maior do que em 1972. Mas o que eu estava dizendo é que os efeitos da ditadura de Pinochet no Chile também foram alcançados nos Estados Unidos, só que sem terror.



– De que maneira?



– Através de outras técnicas de marginalização e atomização, incluindo a imensa ofensiva da indústria de relações públicas e propaganda para privatizar os interesses. Nos EUA, um em cada seis dólares é gasto em marketing. Então, se você vê televisão, é bombardeado com publicidade e propaganda todo dia, desde a infância. As crianças passam muitas horas todo dia vendo TV então elas estão sendo formadas pelos ideais da cultura de consumo, em que sua única preocupação é você mesmo e sua máxima escolha é entre um par de sapato ou outro. A participação da sociedade civil está escolhendo, o contato entre pais e filhos caiu 45% desde os anos 60. As pessoas estão sozinhas. A unidade da vida social é você e seu aparelho de TV. Isso é o ideal. O mundo das relações públicas e dos negócios que criar uma sociedade na qual você interaja com seu aparelho de TV ou seu computador. Durante os anos Reagan, os sindicatos foram criminalmente atacados.



– O senhor não acha que as pessoas estão se vendo menos porque hoje elas têm que trabalhar mais para manter sua renda?



– Nos EUA, desde os anos 80, os salários reais estão estagnados ou em declínio. Isso continuou mesmo na atual fase de recuperação. Marido e mulher têm que estar ambos no mercado de trabalho para manter a família. Temos os pais trabalhando até 50 horas por semana e não há, como na Europa ou no Japão, um sistema social de apoio à família. Então as crianças ficam sozinhas e vêem televisão. Há um estudo interessante da Unicef sobre as sociedades ricas, feito em 1993, mostrando que na sociedade industrial desenvolveram-se dois modelos – num nipo-europeu e outro anglo-americano. Este último, na descrição do estudo, se traduzia numa verdadeira guerra contra as crianças e famílias. Os efeitos disso são marcantes. Se você olhar as estatísticas de pobreza infantil, violência contra as crianças, crime juvenil, drogas, você encontra uma incidência muito maior nos EUA e Inglaterra. Os dois são países que, até certo ponto, aplicam o modelo que eles tentam impor ao resto do mundo. Não o aplicam totalmente, porque sabem de seus efeitos destruidores, mas o aplicam pelo menos contra os pobres. E os pobres submetidos a esse tratamento ficam como os pobres do Brasil. É claro que é um país muito mais rico, então não é exatamente igual, mas estruturalmente é. Isso é um fenômeno mundial, efeito do programa neoliberal.



– Como se rompe com esse modelo?



– Primeiro as pessoas têm que libertar suas mentes. Ontem eu li The New York Times aqui no hotel e me chamaram atenção dois artigos na seção de Economia, um sobre o Japão e outro sobre os Estados Unidos. O artigo sobre o Japão dizia que o governo japonês está estudando um grande programa, ao custo de 1 bilhão de dólares, para a indústria de semicondutores, que perdeu sua competitividade. O artigo não diz porque essa perda de competitividade, mas o fato é que o governo Reagan – um dos mais protecionistas da história americana do pós-guerra, apesar de pregar o livre mercado para os pobres – fechou o mercado americano para os semicondutores japoneses, porque eles eram muito baratos, e botou dinheiro público na indústria americana de semicondutores. O outro artigo descrevia como o Pentágono está mudando suas encomendas da McDonnel Douglas para a Boeing. Parece uma coisa pequena, mas é muito importante, porque a Boeing é o maior fabricante de aviões comerciais, e precisa de subsídios do governo, porque não espera sobreviver no mercado. Nenhuma pessoa rica espera sobreviver no mercado, elas querem ser pagas pelo público. O Pentágono vai construir um novo avião militar para subsidiar diretamente as exportações comerciais da Boeing. Eles estão mudando do complexo militar-industrial para o complexo industrial-militar. Com o fim da Guerra Fria, ficou claro que os gastos militares são mantidos para apoiar os ricos. Antes se fingia que tudo tinha a ver com a defesa do país contra agressões estrangeiras. Então você vê duas nações ricas e ambas dependem do financiamento público. A indústria não sobreviveria sem ele. O lucro é privado, mas o custo é público. Isso é socialismo para os ricos.



– Voltando à pergunta…



– Então, a primeira coisa que as pessoas têm que fazer é reconhecer que o neoliberalismo é uma fraude total. É neoliberalismo para os pobres, mas proteção do Estado para os ricos. Por isso o Primeiro Mundo é rico e o Terceiro Mundo é pobre. Temos vários séculos de liberalismo. No século 18 a Índia tinha a maior indústria de manufatura do mundo, e a Inglaterra tinha que se proteger da indústria indiana, conquistando-a e destruindo-a. Aplicando o liberalismo à Índia e se protegendo, de modo a se tornar um país industrial rico, enquanto a Índia se transformava em um pobre país agrícola. Hoje nos EUA estão destruindo o sistema de previdência social, impondo o neoliberalismo aos pobres, ao mesmo tempo em que aumentam os subsídios à indústria de alta tecnologia.



– O sr. tem esperança?



– Claro, por que não? Em todo mundo as pessoas estão insatisfeitas, procurando alternativas, mas houve um certo sucesso na destruição da organização social. Há toda uma cultura de individualização que tem o objetivo de separar as pessoas.A menos que a mídia seja democratizada será muito difícil mudar a cabeça das pessoas. As telecomunicações – a chamada nova fronteira – estão nas mãos do setor privado. Nos EUA, foram distribuídas ano passado entre cinco conglomerados privados, como Disneyworld, PTI. Foi a maior transferência de recursos públicos para o setor privada da história.



– O senhor sempre fala do uso distorcido das palavras. O senhor pode nos dar exemplos?



– Neoliberalismo é uma delas. Não há nada de novo, é um sistema de dois séculos, por isso os países pobres são pobres. E também não é liberalismo. E esses dois artigos de que falei em The New York Times mostram que é liberalismo para os pobres e não para os ricos. Globalização é outra palavra. Pintam um quadro de que as leis naturais do mercado estejam fora de controle, não há alternativa senão submerter-se a elas. Se você olhar o fluxo de investimento e comércio, ele é praticamente o mesmo de um século atrás. O caráter é diferente, mas a escala é a mesma. Cerca de 70% do comércio é dentro de três áreas: Europa, Canadá e Estados Unidos. Todos esses países têm democracias parlamentares. Se as pessoas pudessem usar o sistema parlamentar, poderiam controlar a globalização. Há um esforço para doutrinar as pessoas nesse sentido. Pegue a palavra democracia. Fala-se que houve uma onda de democratização em todo o mundo, mas é o oposto, houve um ataque à democracia. E verdade que há mais eleições, mas as eleições têm cada vez menos sentido. Pegue também a palavra comércio: supõe-se que houve um enorme aumento no comércio mundial. Nos EUA, metade do que é chamado comércio são na verdade transações internas das corporações e suas subsidiárias em todo o mundo. Se a Ford Motor Company envia componentes para o México, para serem montados por mão-de-obra barata, que enviará o carro de volta aos Estados Unidos, isso é chamado de importação e exportação. Mas não é. É como se alguém tivesse uma loja e passasse uma mercadoria de uma prateleira para outra. Isso é controlado por uma mão muito visível e não pelas leis do mercado. É controlado por instituições totalitárias, que são as grandes corporações. O comércio verdadeiro pode mesmo estar em declínio.



– E qual a saída?



– Se você olhar a história por um outro prisma, vai ver que tem havido lutas contínuas contra isso que tiveram certo sucesso. As coisas estão muito melhores hoje do que há séculos atrás. Há dois séculos a democracia parlamentar parecia impossível. A democracia pode não ser ideal hoje, mas é muito melhor que o feudalismo. Há 200 anos, parecia que a escravidão era necessária e que não podia haver outra maneira de viver. Hoje nos EUA, o debate é sobre a defesa dos serviços públicos de saúde. Há 30 anos não havia serviço nenhum para se defender. No movimento dos direitos da mulher, por exemplo, houve uma enorme mudança nos últimos 30 anos. O mesmo com as ONGs e os movimentos dos direitos humanos. São lutas populares que têm um efeito e lentamente, através dos tempos, as coisas vão melhorando.

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