O eterno sexo frágil
Publicado em 09/01/00 no caderno Mais! da Folha de São Paulo.
Segundo o mito de criação bíblico, a mulher nasceu quando Deus retirou uma costela ao homem. Essa imagem patriarcal é dúbia: de um lado, a mulher parece um simples apêndice do homem; de outro, porém, subentende-se que o homem, ao ser “cindido” de sua parte feminina, é ele próprio ferido e sofre uma perda. O problema, claro, não está no plano da anatomia. A “pequena diferença” que as crianças descobrem precocemente em seus corpos não diz nada, em essência, sobre a maneira que as atribuições culturais e sociais são repartidas entre os sexos.
O domínio masculino (patriarcado) não decorre de caracteres biológicos, antes é um aspecto básico da forma social, sendo portanto o resultado de processos históricos. Por isso o patriarcado está longe de ser verificado em todas as culturas. Na história sempre houve sociedades que conheceram uma relação bastante igualitária entre os sexos. E cotejos interculturais mostram que também aquelas “qualidades” sociais ou psíquicas, rotuladas com aparente espontaneidade como “tipicamente femininas” ou “masculinas”, podem revelar-se sob formas totalmente contraditórias em épocas diversas, em diversas estruturas sociais e diversos modos de produção.
O universalismo abstrato do moderno sistema produtor de mercadorias sempre despertou a impressão de que fosse relativamente neutro sob o prisma sexual. Mercadoria é mercadoria e dinheiro é dinheiro; onde estaria inscrita aí uma valoração sobre os sexos? A sobrevivência das estruturas patriarcais na família e na sociedade podia parecer assim, numa análise superficial, um mero resquício do passado pré-moderno. Nesse sentido, o feminismo reivindicou desde a Revolução Francesa uma “igualdade de direitos”, tal como a prometia a forma universal da economia monetária moderna. Desse ponto de vista, a redução masculina do lema “liberdade, igualdade, fraternidade” era um puro arbítrio da dominação masculina herdada do passado, devendo ser ampliada para abarcar não só uma fraternidade entre “irmãos”, mas também entre “irmãs”.
Até hoje o feminismo como política não foi além da exigência de participação feminina no universalismo do moderno sistema produtor de mercadorias. O “homem abstrato”, o átomo individual da sociedade, pode ser tanto homem quanto mulher. De outro lado, a pesquisa histórica e sociológica feminista descobriu há tempos que a desvantagem e a depreciação da mulher na modernidade não representam nem um “resquício” de relações pré-modernas nem uma simples vindicação masculina do poder, mas radicam profundamente nessas próprias relações modernas. Isso porque o moderno sistema produtor de mercadorias não é tão universal como parece ser. Ele tem de certa forma um reverso, que permanece obscuro na sociologia oficial. Refiro-me a todos os âmbitos e aspectos da vida que não se deixam exprimir em dinheiro. E esse reverso do sistema é tudo menos sexualmente neutro, pois dele basicamente as mulheres foram feitas responsáveis.
Trata-se, por um lado, de certas atividades concretas que se dão no horizonte doméstico, para além da produção de mercadorias: cozinhar, lavar roupa, fazer faxina, cuidar dos filhos etc. Por outro lado, essa tarefa definida como “feminina” transcende a atividade meramente mecânica; a mulher deve ainda criar uma atmosfera agradável e afetuosa, na qual não impere o tom cortante da concorrência como “na vida lá fora”, no espaço público capitalista da economia, da política e da ciência. A mulher, portanto, é responsável pela “dedicação afetiva”, de uma certa maneira, pelo “trabalho amoroso” dedicado ao homem e aos filhos. Assim, é uma das “virtudes femininas” ter faro para relações pessoais, ser emotiva e “meiga”; em compensação, o homem deve bancar o intelectual, o durão, alguém pronto para a concorrência. Para tanto, não precisa ser bonito, o que por sua vez é o primeiro dever da mulher.
Ao contrário de opiniões correntes, a modernização não atenuou o patriarcado, antes o agravou. Foi primeiro a economia capitalista que cindiu de forma tão extrema homem e mulher, como se fossem seres de planetas diferentes. Nas sociedades pré-modernas ainda não havia uma divisão estrita entre a produção de bens e a gestão doméstica. Por isso as atribuições sexuais eram também menos unívocas; as mulheres tinham o seu próprio lugar na produção agrária e artesanal. A moderna economia de mercado, pelo contrário, transformou a produção de bens numa esfera economicamente autônoma, numa esfera da maximização empresarial abstrata dos lucros, e, com isso, num aspecto central da esfera pública burguesa dominada pelo sexo masculino. Capitalistas e empresários, como bem se sabe, assim como políticos, são sobretudo homens.
Essa nova e agravada repartição funcional entre os sexos na modernidade não podia ser igualitária. As atividades e condutas definidas como “femininas”, é verdade, são tão necessárias à sobrevivência da sociedade quanto a produção de bens, que foi deslocada para o campo funcional “masculino” da lógica empresarial. Mas a cota dessas atividades e condutas na produção geral da sociedade não foi creditada às mulheres. Justamente porque foram feitas responsáveis por tudo o que, pela sua natureza, não se deixa exprimir em dinheiro e, portanto, “não tem valor” segundo os critérios capitalistas, a mulher foi considerada, a exemplo de suas esferas de atividade, de suas qualidades e virtudes imputadas, como inferiores e secundárias.
Claro que, na modernidade, mulheres sempre foram encontradas no ambiente burguês, tanto nas atividades remuneradas da esfera econômica quanto na política, na cultura etc. Mas o estigma de sua depreciação sexual perdurou também nesses âmbitos. Uma mulher com profissão ou politicamente ativa não se desvencilha das marcas sociais que lhe são imputadas pela cultura dominante masculina. Ela continua, em princípio, como responsável pela cozinha, pelos filhos e pelo “amor”, ou seja, nunca é levada a sério na economia ou na política. E este não é somente um modelo imposto de fora, mas também um aspecto psicologicamente introjetado, cuja origem é a socialização feminina. Como todos sabem, as mulheres são até hoje em menor número que os homens nas atividades profissionais e públicas; muito mais raramente elas alcançam posições de destaque e, em regra, são pior remuneradas.
Aqui vem à tona o dilema do movimento feminista: para realmente superar o patriarcado, ele teria de pôr radicalmente em dúvida todo o modo de produção moderno; não no sentido, claro, de uma idealização retrógrada das relações agrárias, mas como exigência de uma forma de organização fundamentalmente diversa das forças produtivas modernas. Enquanto a racionalidade destrutiva e “masculina” da lógica empresarial não for rompida, serão também perpetuadas as formas de atividade e as pseudoqualidades definidas como inferiores e relegadas à esfera privada. Só para além da cisão estrutural entre uma “lógica do dinheiro”, de um lado, e uma “falta de lógica” da vida doméstica, da dedicação pessoal e da emotividade, de outro, poderia florescer uma relação emancipatória entre homens e mulheres.
Um feminismo, ao contrário, que se limite à exigência de “direitos iguais” no interior do modo de produção dominante há necessariamente de sucumbir à forma cindida da vida social. Sempre caíram em ouvidos moucos o apelo de que os homens devessem participar em igual medida das atividades e condutas cindidas no seio da vida pessoal e familiar. Inversamente, a visão feminista estreita-se cada vez mais, e de forma automática, à esfera econômico-política. A emancipação feminina não é medida pela mudança dos homens no âmbito privado, mas pela mudança das mulheres no âmbito público. O modelo pós-moderno não é mais a mulherzinha dengosa e de miolo mole, mas o tipo andrógino da “mulher de carreira”. Ao lado da loiraça oxigenada, da vampe e da mãe extremosa, fiel dona de casa, surge a banqueira que faz jogging e surfa na Internet, em cujo caminho de solteira ela passa, feito um homem, por cima de tudo e de todos.
De fato, pelo menos nas metrópoles do mercado financeiro, parece haver uma sinistra convergência entre os sexos e suas atribuições.0 Enquanto a mulher de profissão é obrigada a demonstrar uma boa dose de rigor e “frieza” emocional para subir na vida, a gestão pós-moderna descobriu, por sua vez, a chamada “inteligência emocional” para o cálculo empresarial e o planejamento individual de sucesso na luta da concorrência. Em livros e em seminários é oferecido um programa inovador de treinamento para “empresários sensíveis”. “Peritos em emoção” e “estudiosos da emoção” surgem aos montes, tagarelam sem parar. Fala-se tanto de uma “cultura da emoção” quanto de um “empresariado estressado”. Trata-se, portanto, de manipular e regular funcionalmente as sensações subjetivas e os sentimentos próprios. A emotividade, circunscrita até hoje à esfera privada e delegada à mulher, deve ser carreada para fins capitalistas e transformada, de certa maneira, numa fórmula de sucesso.
A perversidade desse propósito fica especialmente clara quando a “tecnologia emocional” aparece como gestão empresarial ou política de subalternos. O economista alemão Hans Haumer, por exemplo, fala nesse sentido de um “capital emocional” cuja função é render “suficientes ganhos”. A medida para tanto é um “coeficiente emocional de capital”, que indicaria a grandeza com que a “tecnologia humana” da dedicação pessoal reverte em benefício do lucro da empresa. Implicado nisso está a exigência, pela “racionalização emocional”, da sujeição dos trabalhadores aos reclamos da flexibilidade empresarial, a aceitação de desmandos de toda espécie e o estímulo da produtividade individual. O chefe “emocionalmente inteligente” evita atritos pessoais e passa aos trabalhadores a sensação de que são amados e reconhecidos, mesmo quando ele os trata feito simples material humano. O rendimento do “capital emocional” atingiria o auge de eficiência quando as pessoas, comovidas às lágrimas, agradecessem ao empresário o fato de serem postas no olho da rua.
É nítida, nesse caso, uma reintegração das formas de vida e comportamentos cindidos, mas no sentido errado: o sistema econômico autonomizado começa a tragar as normas, modelos e “qualidades” reservados até agora ao âmbito doméstico e à intimidade, a fim de instrumentalizá-lo no sentido da lógica do dinheiro. Só dentro desses horizontes os homens pós-modernos são mais emocionais que no passado, enquanto a mulher pós-moderna pode agora empregar de modo economicamente funcional suas “virtudes femininas” a-socializadas. O que na mídia é sugerido como distensão na batalha dos sexos sob a forma de futebol feminino, strip-tease masculino ou casamento de homossexuais, na verdade resulta na redução economicamente funcional da esfera doméstica, antes um reduto dos sentimentos. A androginia consiste em que indivíduos de ambos os sexos, em igual medida, mobilizem “ternura e frieza” para a concorrência e aliem a competência técnica à competência emocional, a fim de manter a todo vapor a máquina de fazer dinheiro.
Se no passado a emotividade doméstica da sociedade capitalista era repartida de maneira desigual, agora ela se acha para sempre destruída. Pois justo nesse aspecto vigora ironicamente a lei da escassez. O que é consumido em dedicação e sentimento pessoal na empresa, no propósito de manter lubrificada a máquina econômica, perde-se para o âmbito cindido da vida privada e da intimidade. Se as atividades e condutas “femininas”, na qualidade de reverso da produção de mercadorias, não forem superadas juntamente com a economia capitalista, sendo antes tragadas por essa própria economia, então o resultado pode ser apenas uma nova dimensão da crise. Os aspectos necessários da vida social, embora não representáveis em forma monetária, não serão assim repartidos igualmente entre homem e mulher; quando muito, virarão ruínas.
O que hoje dá o tom é o modelo televisivo da “mulher dinâmica”, que junta carreira e família sob o mesmo teto e ainda por cima se embeleza diariamente para arrancar suspiros como “objeto do desejo”. Mas para a maioria isso é exigir muito, algo de todo inviável. A porcentagem das mulheres que consegue esse malabarismo é infimamente baixa. Só uma reduzida minoria de “mulheres de carreira” pode dar-se ao luxo de uma tal ilusão, delegando o fardo da administração do lar, dos cuidados com os filhos etc. a empregadas domésticas (imigrantes, negras, desprivilegiadas), que, por sua vez, deixam de ter tempo para seus próprios filhos. O grosso das mulheres está absurdamente sobrecarregado com a tarefa de responder, ao mesmo tempo, pelo dinheiro, pelas atividades domésticas e pelo “amor”. Na pós-modernidade o patriarcado não some, antes “se embrutece” e se estilhaça em formas múltiplas de barbárie, como escreve a feminista alemã Roswitha Scholz. Este é o mundo que transforma crianças em assassinos e psicopatas.