Ode à mordaça

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Ode à mordaça (Mario Benedetti)

Do livro “Inventário”
Tradução de Julio Luís Gehlen

Não creio em você
mordaça
mas vou dizer
por que não creio
como você vê
agora não digo
nem hoje
nem ai

e no entanto
igual solto o verbo
respiro o grito
e armo a blasfêmia

penso
logo insisto

faço inventário
do seu alegre palpitar da miséria
da sua crueldade sem muitas ilusões
da sua ira lustrada
do seu medo
porque mordaça
você
é muitíssimo mais que um pano sujo
é a mão trêmula que a ajuda
é o dono flagrante desta mão
e até o dono canalha do seu dono

porque mordaça
você é muitíssimo mais que um pano sujo
com gosto de boca livre e palavrão
é a lei malvivente do sistema
é a flor bem-morrente da infâmia
penso
logo insisto

a seus cuidados ficam meus lábios apertados
ficam meus incisivos
caninos
e molares
fica minha língua
fica meu discurso
mas não fica porém minha garganta

na minha garganta começo
desde logo
a ser livre
às vezes engulo a saliva amarga
mas não engulo meu rancor sagrado

mordaça bárbara
mordaça ingênua
você acredita que não vou falar
porém sim falo somente com ser
e com estar

penso
logo insisto

que me importa calar
se falamos todos
por todas as paredes
e por todos os signos
que me importa calar
se você já sabe obscura
que me importa calar
se você já sabe mordaça
o que vou dizer
porcaria.

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