Costernados, raivosos

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Costernados, raivosos (Mario Benedetti)
Do livro “Inventário”
Tradução de Julio Luís Gehlen

Vamos
derrotando afrontas.
Ernesto “Che” Guevara

Assim estamos
consternados
raivosos
mesmo que esta morte seja
um dos absurdos previsíveis

dá vergonha olhar
os quadros
o sofá
os tapetes
tirar uma garrafa da geladeira
bater as três letras mundiais do seu nome
na rígida máquina
que nunca
nunca esteve
com a fita tão pálida

vergonha ter frio
e aproximar-se da estufa como sempre
ter fome e comer
essa coisa tão simples
abrir o toca-discos e escutar em silêncio
sobretudo se € um quarteto de Mozart

dá vergonha o conforto
e a asma dá vergonha
quando você comandante está caindo
metralhado
fabuloso
nítido
você é nossa consciência crivada

dizem que o queimaram
com que fogo
vão queimar as boas
boas novas
a irrascível ternura
que você trouxe e levou
com sua tosse
com seu barro

dizem que incineraram
toda a sua vocação
menos um dedo

basta para mostrar-nos o caminho
para acusar o monstro e seus tições
para apertar de novo os gatilhos

assim estamos
consternados
raivosos
claro que com o tempo a pesada
consternação
irá passando
a raiva ficará
se fará mais limpa
você morto
você vivo
você caindo
você nuvem
você chuva
você estrela

onde estiver
se é que você está
se está chegando

aproveite por fim
respirar tranqüilo
encher de céu os pulmões

onde estiver
se é que você está se está chegando
será uma pena que não exista Deus

mas haverá outros
claro que haverá outros
dignos de recebê-lo
comandante.

Montevidéu, outubro de 1967.

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