No meio da noite

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No meio da noite (Adélia Prado)

Acordei meu bem pra lhe contar meu sonho:
sem apoio de mesa ou jarro eram
as buganvílias brancas destacadas de um escuro.
Não fosforesciam, nem cheiravam, nem eram alvas.

Eram brancas no ramo, brancas de leite grosso.
No quarto escuro, a única visível coisa, o próprio ato de ver.

Como se sente o gosto da comida eu senti o que falavam:
“A ressurreição já está sendo urdida, os tubérculos
da alegria estão inchando úmidos, vão brotar sinos”.

Doía como um prazer

Vendo que eu não mentia ele falou:
as mulheres são complicadas. Homem é tão singelo.
Eu sou singelo. Fica singela também.

Respondi que queria ser singela e na mesma hora,
singela, singela, comecei a repetir singela.

A palavra destacou-se novíssima
como as buganvílias do sonho. Me atropelou.
— O que que foi? — ele disse.
— As buganvílias…

Como nenhum de nós podia ir mais além,
solucei alto e fui chorando, chorando,
até ficar singela e dormir de novo.

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