Durante 10 meses, o engenheiro florestal João Gilberto Peixoto Milanez, casado com Arimila, pai de Mariana Marayadu, Waidê e João Lucas, viveu uma experiência diferente na vida. Ele, a esposa e a filha Mariana, de 1 ano e 8 meses na época, passaram uma temporada em aldeia indígena no Xingu, desenvolvendo um trabalho de educação junto aos indígenas. Mas ao voltar para casa, em Sidrolândia, João trouxe na bagagem aprendizado e lição de vida sobre como realmente é viver em comunidade.
“Trabalho com sistema agroflorestal orgânico em Sidrolândia, fazendo entrega dos produtos em Campo Grande através da CSA (Comunidade que Sustenta a Agricultura). Dois anos antes de eu vir pra região, morava em uma aldeia indígena no Xingu com minha esposa e nossa filha Mariana Marayadu junto ao povo Yudjá, conhecidos também como Juruna.
A amizade que desenvolvemos com os Yudjá por meio de trabalhos voluntários nas aldeias através da Associação Novo Encanto de Desenvolvimento Ecológico fez com que recebêssemos um convite inesperado do nosso “irmão” Yãkarewa Juruna. Ele me ligou dizendo que precisavam de uma pessoa para assumir a coordenação pedagógica da escola da aldeia Aribaru e queria que fôssemos nós a desempenhar o trabalho, já que eles não conheciam algum branco que confiavam que conseguiria se adaptar à vida na aldeia e realizar o trabalho.
Pensamos, mas não hesitamos em aceitar o convite. Na época eu trabalhava com uma comunidade quilombola que me exigia atividades presenciais apenas uma semana por mês, logo daria para conciliar morar na aldeia com minhas atividades profissionais. Minha esposa é bióloga e trabalhou por alguns anos com a pedagogia Waldorf, estando bem capacitada para ocupar o cargo de coordenadora pedagógica da escola. Pois bem, fomos sem sombra de dúvidas que seria uma vivência inesquecível e de grande crescimento pessoal, inclusive para nossa filha Mariana que tinha um ano e oito meses na época.
Lá morávamos em uma oca de madeira coberta de palha de inajá e chão batido, dormíamos em redes, o banho e lavagem de roupas e louça fazíamos no rio e a noite nos guiávamos pela luz de lanternas e velas. Tínhamos um pequeno fogão comum que levamos para facilitar a preparação de alimentos, mas de vez em quando usávamos fogo de chão para cozinhar. Todos os meses, quando íamos para a cidade, fazíamos compras para complementar nossa alimentação além do que havia na aldeia.
A base da alimentação deles é peixe e farinha e em alguns momentos produtos da roça como banana, melancia e milho e frutos da floresta como ingá, jatobá e pequi.
Minha esposa desempenhava o trabalho de coordenadora pedagógica na escola junto aos professores indígenas e também fazia um trabalho com as mulheres, exercendo sua ocupação de doula. Eu acompanhava as atividades desempenhadas pelo Yãkarewa e sua família, indo pescar e caçar, trabalhar na roça, construindo casa, buscando materiais para confecção de artesanatos e arco e flecha além de outras coisas.
Meu objetivo era o de me conectar ao povo Yudjá e vivenciar sua cultura, pois eu sabia que tinha muito mais para aprender do que ensinar. Eles são um povo pacífico e transmitem isso. É como se lá o tempo passasse diferente, pois não sentíamos a pressão da rotina como acontece na sociedade dos não índios.
Um dia uma expedição de saúde chegou à aldeia e no momento de voltar eles estavam conversando que precisavam sair cedo para chegar a tempo na cidade para trabalhar, pois o dia seguinte seria segunda feira, foi quando ouvi um Yudjá dizer: “Segunda-feira é coisa de branco capitalista”. Rimos e eu como estava morando lá pude entender com mais profundidade o que aquilo significava.
Eles são um povo trabalhador, mas não sentem a necessidade de acumulação. Trabalham quando é preciso. Se tem fome é preciso colher algo da roça, pescar ou caçar. Se é o momento de construir uma nova casa então mãos à obra, independente se é segunda ou sete de setembro. Bem como se é dia de celebrar, isso pode ser feito em uma terça-feira sem problema algum, pois são conectados à natureza e muito espiritualizados seguindo os sonhos e atendendo aos chamados para celebrar a vida e também se recolher no momento oportuno.
Outro dia eu estava caminhando pelo pátio da aldeia e a Mariana estava por perto. De repente começou a ventar, o tempo começou a fechar e foi escurecendo o que pra mim significava apenas que vinha chuva. Então o Payawá me alertou e disse: “Leve a Mariana para dentro de casa, essa nuvem está trazendo notícia ruim e é para criança. Eu a peguei e fomos para nossa oca. A chuva não veio, o tempo fechado se abriu e continuamos as atividades normais. No dia seguinte soubemos que uma criança da aldeia foi diagnosticada com tuberculose.
Ainda bem que chegavam mais sinais de alegria para o povo do que sinais ruins. “Tá ouvindo esse passarinho cantar?”, Yãkarewa certa vez me perguntou. Eu respondi afirmativamente e ele continuou: “Quando ele canta desse jeito é notícia boa que está trazendo”. Demorou um pouco, mas a confirmação chegou com a notícia de que estávamos esperando mais um filho, nosso querido Waidê, concebido e gerado lá na aldeia. Ele nasceu na nossa oca em um parto super humanizado recebendo boas energias de toda a comunidade.
Lá pudemos sentir o que é viver em comunidade. Eles cuidavam da gente como membros da família. Um dia fui pescar com Payawá e não peguei nada, enquanto ele pescou dois tucunarés, um grande e um médio. Ele é pai de oito filhos e na minha oca éramos apenas três moradores. Eis que ele me diz: “Já que você não pegou peixe, leva esse pra sua casa”, me oferecendo o maior deles. Deu um nó na garganta, ele tendo que alimentar um time de futsal e me oferecendo o melhor que tinha. Obviamente não aceitei, mas recebi uma grande lição aquele dia. Isso era comum, nos oferecerem o seu melhor. E o melhor nos deram: sua atenção para nos ensinar sua cultura, paciência, alegria e a viver o momento.
Uma vez fui com eles até a cidade e na volta estávamos esperando na beira do rio até que viessem nos buscar de barco para subirmos para a aldeia. Então avistamos dois barcos descendo paralelamente. Em certo momento um deles virou logo atrás do outro passando por aquela onda formada pela hélice do motor e assim que passou, o motor dele, que não estava muito bem fixado ao barco, soltou e afundou no rio Xingu em um lugar fundo sem chances de conseguir recuperar. Um motor de barco não é uma coisa barata, muito mais para eles que tem (os que tem) uma renda baixíssima. Eu fiquei muito preocupado com aquilo e quando olhei para os índios que estavam comigo eles estavam rindo. Demorei pra entender. O Akan até soltou uma piadinha: “Vai ter que colocar gasolina no anzol pra ver se fisga o motor”. Os outros riram mais ainda. Até que eu entendi. Se tivesse algo para fazer, eles fariam para resgatar o motor. Como não tinham, o melhor a fazer era rir da situação pois era uma máquina e não uma pessoa. Embora tivessem trabalhado para conseguir comprar, sofrer não levaria a lugar algum. Quando chegamos à aldeia, rebocados pelo outro barco, já foram contando da novidade causando mais gargalhadas nos outros moradores da comunidade.
Lá construímos um viveiro, implantamos uma agrofloresta, construímos sanitários secos entre outras coisinhas para minimamente agradecermos por nos tratarem como membros da família, pois foi assim que sentimos. Esse sentimento carregamos até hoje com saudade no peito dos bons momentos vividos juntos.
Moramos lá por 10 meses em um período de troca de experiências onde aprendi muito. Uma das coisas que pude notar acompanhando-os em suas atividades diárias, e posso afirmar, é que os Yudjá são um povo sustentável”.
Fonte: CAMPO GRANDE NEWS